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                Um corredor escuro, de pouco mais de 10 ou 15 metros, nos levava a uma sala quadrada. Matheus tateou pelas paredes de concreto até achar um interruptor. A lâmpada pendurada na parede oposta ao corredor, no exato meio da sala, se acendeu preguiçosa. No começo a luz dela era rosada e muito fraca, a cor lembrava uma lanterna colocada contra o dedo de uma criança.

Matheus não me deixou entrar completamente naquela sala até que a luz estivesse forte o suficiente para iluminar a tudo. Como se aquilo fosse um ritual, esperamos no final do corredor que aquela luz rósea se transformasse em um amarelo quase tão vivo quanto o sol que iluminava lá fora o carro, o estacionamento e os cinco ou seis prédios. A diferença é que aquela fonte de luz eu conseguia ver claramente na minha frente.

No centro da sala, com pelo menos três metros de diâmetro, o motivo de estarmos ali parados no canto da sala. Um poço redondo no centro do quadrado que parecia ser um caminho direto até o centro da terra de tão profundo. As bordas eram de cimento, ásperas, feitas depressa e sem acabamento nenhum.

O resto do chão da sala era de um cimento liso, que lembrava uma quadra de esportes ou algo assim. Era só ali, na borda do buraco, que ele ficava todo áspero e enrugado como se alguém simplesmente tivesse despejado um pouco de cimento e espalhado com o pé mesmo. Como se a dona Arlete tivesse feito aquilo às pressas para não perder o próximo tutorial de artesanato na TV.

Eu me aproximei do buraco para olhar mais de perto. Pouco abaixo da malfeita gola de cimento a parede do buraco era completamente negra. Apontei a lanterna do meu celular para ela mas a luz parecia ter sido sugada para dentro da parede. Não era um preto comum de tinta que, por mais escuro que fosse, sempre brilha um pouco quando se coloca perto da luz. Não, a luz do meu celular não era suficiente para causar nenhum efeito sobre aquela parede. Para falar a verdade a luz parecia contribuir ainda mais para a escuridão daquela parede.

Dei mais um passo na direção do abismo. A parede preta parecia se estender para sempre. Matheus colocou as mãos nos meus ombros e, sem tira-las, fingiu que ia me empurrar para o buraco. Embora ele tenha me segurado o susto foi mais do que suficiente para que eu deixasse meu celular cair no chão. Por pouco ele não caiu no buraco.

-Você tá maluco porra?

Ele ria de mim.

-Relaxa cara.

-Eu poderia ter caído!

-Eu tava te segurando! Além disso, não ia te acontecer nada se você caísse.

Apanhei meu celular do chão. Ele parecia não ter quebrado: a lanterna ainda estava acesa e a tela funcionava perfeitamente sem risco. O único problema é que estava sem sinal. Mas achei que isso era normal pois estávamos a muitos metros da superfície, olhando para um buraco que ia ainda mais fundo.

-Lá fora, acho que você não percebeu, mas não pega celular também. Isso é uma das coisas que meu irmão mais gostava daqui. Ficar incomunicável, longe de tudo.

-Ele sempre pode também só desligar o celular e ficar, sei lá, no shopping.

-Não é a mesma coisa. Ele disse que se ele desligar o celular ele mesmo, fica se sentindo culpado. Aqui, ainda que alguém queira, nunca achariam ele.

-Achei que seu irmão não se preocupasse com a opinião dos outros.

Matheus se aproximou do buraco. Eu também, ficando atrás dele para evitar mais gracinhas.

-Você viu como a parede é preta? O poço inteiro é assim.

-Eu tava olhando isso quando você tentou me matar.

Ele não riu da minha tentativa de fazer uma piada. Ao invés disso me olhou sério, bem nos olhos, me repreendendo. Matheus é que era o cara engraçado e não gostava quando eu tentava invadir o território dele. Eu era só o cara que... Bom, eu tinha acabado de perceber que não sabia exatamente qual era a "minha coisa". O amigo do cara engraçado talvez?

-Empresta seu celular.

-Por quê?

-Só uma vez faz o que eu to te falando sem ficar questionando tudo?

Eu passei o celular para ele devagar, contrariado. Ele se abaixou ao lado do buraco e ficou de joelhos na beira me pedindo para fazer o mesmo. O que eu fiz revirando os olhos. E ficamos os dois ajoelhados do lado de um buraco preto.

-Tenta não surtar.

Ele acendeu a lanterna do meu celular e, logo após me dizer para não surtar, simplesmente deixou o celular cair no buraco. Eu vi o celular descer, primeiro em linha reta como num mergulho para depois começar a rodar descontroladamente. A cada volta a lanterna tentava iluminar as paredes negras do poço como se fosse uma sirene de polícia mas era inútil. Depois de alguns giros o celular começou a ficar cada vez menor até que simplesmente sumiu.

-Você ficou maluco?

-Calma.

Eu me levantei enquanto ele continuou agachado ao meu lado. Eu esperava o barulho do celular se espatifando para fazer alguma coisa. Ou começar a bater nele ou talvez jogar ele mesmo pelo buraco, sei lá eu estava com muita raiva. Eu não sei o que eu ia fazer quando ouvisse o barulho do meu celular se chocando com o chão daquele lugar. De qualquer forma eu nunca tive que fazer nada pois o barulho nunca veio.

-Cara por que você fez isso?

Eu tentei engrossar a voz e fazer cara de bravo para mostrar que eu não ia aceitar aquilo calado mas a minha vontade era chorar. Sentia um aperto na garganta e que tornava muito difícil falar qualquer coisa sem desafinar a voz enquanto meus olhos pareciam prestes a lançar uma cachoeira de lágrimas. Eu, mesmo assim, tentava me manter firme.

Nada disso importava muito já que ele continuava ali ao lado do buraco olhando para o escuro fixamente. A sala continuava completamente silenciosa. Nenhum barulho de celular caindo. Se eu forçasse minha audição conseguiria ouvir a lâmpada na parede emitindo um zumbido muito baixinho.

Naquela hora eu decidi que ainda que não soubesse quem eu era eu não seria o cara que ia chorar ao lado de um buraco por causa do meu celular. Reuni minha última força e falei meio baixo pra evitar de perder o controle sobre o choro.

-Eu vou embora, pra mim já deu.

Comecei a andar na direção da escada.

-Espera...

Continuei andando decidido. A cada passo para dentro daquele corredor eu me afastava mais e mais da lâmpada amarela que iluminava a sala. Não era a mesma escuridão do buraco, aquela aceitava ser diminuída pela luz da lanterna do celular. Nós tínhamos chegado ali guiados pela lanterna de Matheus sem problema mas agora eu não tinha nenhuma fonte de luz comigo. Ia ser meio difícil sair dali assim mas, mesmo assim, não queria mais ficar ali.

-Volta aqui, você logo vai ver por que viemos aqui.

Parei no meio do corredor e voltei minha cabeça para Matheus na intenção de mandar ele pra algum lugar ou coisa parecida mas o que eu vi me deixou com os pés pregados no chão e qualquer xingamento morreu na garganta antes de virar palavras.

Ele estava em pé agora, bem no meio da sala quadrada de frente para mim. As paredes do corredor refletiam um pouco da luz amarela ao mesmo tempo que pareciam emoldurar a sala quadrada como se ela fosse uma pintura. A parte da frente do corpo de Matheus estava quase que completamente escura já que a lâmpada, do ângulo em que eu estava, ficava eclipsada pela cabeça dele. A luz dela parecia formar um halo ou um auréola na cabeça dele, como se ele fosse um santo ali em pé no meio daquela sala.

E, enquanto eu ainda procurava palavras pra mandar ele a merda, eu vi o que me impediu de falar qualquer coisa.

De dentro do buraco um quadradinho escuro veio flutuando, parou por um ou dois segundos no ar e depois pousou gentilmente na mão aberta de Matheus. Era o meu celular, totalmente intacto, com a lanterna acesa e tudo mais. 

HWhere stories live. Discover now