Obrigado pelo presentinho

77.2K 10.8K 19K
                                    

Há dois lugares, nos quais eu posso ensaiar livremente. Um deles é o meu quarto. Não sei se o papo convence alguém, mas tem uma barra de ferro ao lado da minha cama, bem fixada no chão e no teto, que eu supostamente deveria usar para pendurar um mosquiteiro. Titia me ajudou a conseguir. Eu até cheguei a pendurar o tal mosquiteiro por uns dias, e a minha mãe achou uma boa ideia. Mas aí entra o problema: minha irmã endemoniada de nove anos.

A questão é que sou alguém que quase nunca dá problemas, então ela costuma se frustrar por não me pegar na reta. Ela é a única em casa que pode me ferrar nesse assunto, já que o meu irmão do meio está passando um tempo com a madrinha, minha tia, para ver se consegue passar do fundamental. Ele quase toma bomba sempre, mas consegue se safar, o maldito.

O segundo lugar seguro é o salão de dança. É, você provavelmente acha que seria o pior lugar, com mais exposição e gente, mas não é, pelo menos não quando eu entro no prédio, depois que todo mundo foi embora. Veja bem: não é arrombar nem nada. Acontece que a minha tia, madrinha do pirralho, é dona do lugar e disse que não vê problema em eu ir até lá, de vez em quando. Eu disse que seria para ensaiar peças de teatro para a escola. Nunca fiz teatro na vida, é claro que, em um instante, ela descobriu.

Mentir é péssimo, mas, às vezes, é o único meio de manter aquela parte de você que provavelmente é a mais preciosa e ninguém mais pode descobrir. Desde que não machuque ninguém, é claro. Talvez a tia Hani fosse a minha principal influência para começar.

A questão era que eu ensaiava regularmente, três vezes nas semanas livres e uma nas semanas de provas e trabalhos. Mas era tão melhor quando conseguia usar o salão. Eu nem sei o porquê da minha necessidade de guardar isso para mim. Talvez, em parte, pela escola e pela visão das pessoas sobre homens e o que devem ou não fazer. Na verdade, o que homens, mulheres e todos os outros gêneros devem ou não fazer.

Suspiro, calçando os tênis para sair, destranco meu quarto, guardo a chave no bolso e desço as escadas.

O café da manhã é sempre o mesmo. Formamos uma boa família, eu acho: meu pai é calmo, minha mãe é mais ativa, e minha irmã, fofoqueira. Junghyun, meu irmão, vinha sempre, mas voltava para a casa da titia, que é mais perto da escola nova.

Ajeito os óculos no rosto e saio para pegar o ônibus cedo, de manhã. Eu sempre me sento atrás do motorista. É o lugar mais perigoso, mas geralmente ninguém o escolhe primeiro, é sempre o que sobra, então o lugar ao meu lado fica vago.

É engraçado, porque às vezes eu espero muito que alguém se sente comigo, e me pergunto se tem alguma coisa errada quando ninguém vem; outras, fico praguejando mentalmente por alguém ocupar o lugar e me bloquear de cantarolar o que quer que esteja no meu fone enquanto geralmente leio algum livro.

E, então, o botão ativa: minha meia-calça, que encomendei pela internet, está perdida por aí. Havia mandado entregar em casa, e chegou bem na hora em que eu pegaria o ônibus, sem tempo de voltar, destrancar o quarto, abrir a embalagem para ver o tecido nem nada do tipo. O frete deixou a porcaria da meia duas vezes mais cara, mas é o preço de ter uma, já que, se eu entrasse em uma loja para comprar, seria estranho como da última vez. Eu só havia perguntado se tinha meia-calça, e a moça já veio questionando se era para alguma namorada, me olhando como se eu fosse um pervertido ou coisa do tipo.

Faço um bico, tentando colocar o fone, mas sou interrompido quando uma moto começa a tentar ultrapassar o ônibus, bem ao meu lado. Olho pelo vidro, notando o uniforme igual ao que eu usava por baixo do casaco. A moto é bem bonita, preta, lustrada e com tanque grande, em um formato diferente. Abro o livro e volto a ler, até chegar à escola. Quando o ônibus estaciona, espero que todo mundo desça, enquanto guardo os meus fones. Em seguida, vou também ajeitando a mochila arrebentada nas costas, que eu mesmo tinha costurado, usando os meus dotes — aham — e começo a caminhar, mas paro na calçada, vendo uma coisa um pouco à frente: o cara da moto chegando, com outro na garupa.

De pernas pro ar | REPOSTANDO CORRIGIDAOnde histórias criam vida. Descubra agora