8. A vez em que um jovem órfão ofereceu seu coração em uma bandeja

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Acordei sentindo cheiro de ovos fritos. O relógio ao lado da minha cama marcava vinte e duas horas. Inclinei minha cabeça em direção à cozinha, que ficava numa das extremidades do sótão, e vi Ian, na frente do fogão, concentrado no que quer que estivesse fazendo.

— Além de nadador, também é chef de cozinha? — perguntei em voz alta, para chamar a atenção dele.

— Ah, finalmente o dorminhoco acordou!

O Ian tranquilo que eu conheci naquele primeiro dia, antes do beijo, aparentemente estava de volta. Levantei-me da cama e fui em direção a ele, ainda sentindo um pouco de dor na região do abdômen, onde Paulo havia me atingido. Notei que alguém havia feito um curativo sobre o corte em minha sobrancelha enquanto eu dormia. Provavelmente tinha sido a mesma pessoa que estava agora empolgadíssima aprontando alguma coisa na cozinha.

— Espero que você não se importe — Ian apressou-se em dizer. — Imaginei que você ia acordar com fome, então dei uma olhada no que tinha na sua geladeira e fiz uns sanduíches pra gente.

Após Ian nos servir, nos sentamos em frente ao balcão para comer; porém, nenhuma conversa rolou a partir daquele ponto e um silêncio constrangedor tomou conta do ambiente. Sabíamos que havia muito a dizer, mas nenhum de nós conseguia dar o primeiro passo. Decidi tomar a iniciativa e optei por mencionar um detalhe que me deixara curioso.

— Ian, o que você foi fazer no vestiário exatamente na hora que o Paulo tava me batendo? Achei que você nem estivesse na cidade...

— Eu sabia que não conseguiria voltar a tempo pra aula de hoje, mas meu ônibus chegou um pouco mais cedo que o previsto — ele explicou. — Então, resolvi passar na escola pra pegar uma carona com a Maia e não precisar aguardar outro ônibus pra ir pra fazenda. E, pra ser sincero, esperava te encontrar por lá também... Você sabe, pra gente conversar, como combinamos... Quando perguntei de você, me disseram que tinha ido para o vestiário. Então, fui te procurar e o resto você viu com os seus próprios olhos...

— Obrigado — agradeci. — Eu não sei o que aconteceria comigo se você não tivesse aparecido...

Ian apenas sorriu em retorno e voltou a comer em silêncio. A parte mais fácil da conversa tinha terminado e eu tinha achado a explicação que ele me dera razoável. O problema era prosseguir para os assuntos mais complicados. Por isso, decidi adiar um pouco mais.

— E o que a gente vai fazer a respeito do Paulo? Você fez um estrago na cara dele e não temos testemunhas pra provar que foi ele quem começou a briga...

— Essa parte já é um pouco mais complicada — respondeu Ian, visivelmente irritado. — Não sei se a Maia chegou a comentar com você, mas o Paulo é filho do prefeito da cidade e é, de certa forma, intocável. Ele faz o que quer, aonde quer, e todo mundo faz vista grossa.

— Ele ficou incomodado quando Maia ameaçou falar sobre o comportamento dele para o pai de vocês... — lembrei.

— Sim, o meu pai, como delegado, é um dos poucos que não costuma abaixar a cabeça pra ele e ajuda a manter o Paulo na linha. Digamos que o meu velho e o prefeito têm um acordo de cavalheiros, para botar pelo menos um pouco de limites naquele imbecil — explicou Ian.

Por alguns instantes, ficamos em silêncio mastigando nossos sanduíches, cada um de nós perdido em seus próprios pensamentos.

— E o que você pensa em fazer sobre a agressão, Davi? — Ian me perguntou, finalmente.

— Bem, eu entendo que talvez não dê em nada, mas eu prometi à diretora que relataria qualquer tipo de ameaça que eu sofresse dentro da escola... E, também, não acho que minha tia vá deixar esse machucado no meu rosto passar batido. Vamos ter que esperar pra ver no que tudo isso vai dar...

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