O Clube da Lua e a Flor Cadáver (Vencedor do Wattys 2020 ✓)

14. A vez em que um jovem lobo recebeu uma oferta inesperada

Voltei a me trancar em meu quarto com o livro entregue por Maia em minhas mãos. Era noite de sábado e Davi talvez esperasse por mim na pousada, mas eu tinha outros assuntos a resolver. Enrolei-me nos lençóis e abri o pesado volume sobre meu colo.

"— Acho que o Ian vai acabar rasgando o véu!"

A afirmação que Maia fizera a meus pais não saía da minha cabeça. Rasgar o véu era uma das decisões mais controversas que um ser sobrenatural podia tomar. Embora não fosse um crime de fato, ainda assim era condenado por nossa espécie, por conta das consequências que tal ato poderia desencadear. Mas creio estar me adiantando, então permita-me explicar melhor.

Esmeraldina não era uma cidade igual as outras, como você já deve ter percebido. Estávamos geograficamente localizados em um local onde confluíam uma série de forças mágicas e ancestrais – não era à toa que havia tantos seres sobrenaturais vivendo por aqui. "E como os humanos comuns podiam viver em paz, sabendo que existiam tantos monstros lá fora?" – talvez você se pergunte. Era aí que entrava o Tratado do Véu, instituído há séculos, quando Esmeraldina ainda era apenas um pequeno vilarejo, isolado no meio da floresta.

Naquela época, representantes de todas as espécies de seres mágicos fizeram um acordo de não revelar sua existência, nem interferir na vida de pessoas comuns. Assim, todos poderiam continuar vivendo juntos ali, sem representar uma ameaça uns aos outros. No entanto, como os humanos eram o elo mais fraco daquela aliança, uma grande magia de proteção foi lançada sobre toda a região. Funcionava como uma espécie de filtro, que tornava aquelas pessoas alheias à ação das criaturas mágicas. Qualquer coisa que fugisse à racionalidade humana, era automaticamente invisibilizada, passando a ser indetectável por aqueles que não possuíssem magia em sua natureza. Isso era o Véu.

O problema é que, como toda lei, nem sempre as coisas funcionam muito bem na prática. Antes mesmo do tratado ser firmado, muitos humanos já se relacionavam conosco e sabiam da existência das criaturas mágicas. Não dava para simplesmente apagar a memória de todo mundo.

Além disso, como ainda acontece até hoje, não era nada incomum ver lobos se casando com não-lobos e o mesmo valia para os outros seres que viviam por aqui. E, para complicar ainda mais, alguns desses casais já haviam até mesmo gerado filhos híbridos, frutos desses relacionamentos. Esses seres mestiços, apesar de humanos, ainda carregavam um pouco de magia dentro de si, o que os tornava imunes ao Véu.

Qual a solução encontrada então? Descendentes dessas pessoas seriam exceções à regra. Ainda hoje, muitas das famílias mais antigas de Esmeraldina sabiam da nossa existência e viviam em paz com isso. O tratado continuava de pé. E, por compartilharem de nosso segredo, não existia problema algum caso um lobo, ou qualquer outro ser mágico, quisesse se relacionar com algum desses híbridos. Assim, nossa identidade continuava preservada e ficava restrita a um grupo seleto de pessoas.

Rasgar o véu, no entanto, era quando uma criatura mágica revelava sua real natureza para alguém de fora do tratado. Uma pessoa que, até então, tivesse vivido ignorando completamente a nossa existência. Fazer isso era quase um tabu. Com os avanços da ciência e da tecnologia, sabíamos o que poderia acontecer caso fôssemos descobertos. Ninguém queria acabar como cobaia em um laboratório, por exemplo. E o mesmo valia para o humano em questão. Ao descobrir a existência da magia, ele perdia a proteção do Véu e se tornava vulnerável, podendo acabar vítima de seres mágicos não tão bondosos assim. Era um risco muito grande a se correr, para ambas as partes.

E isso me trazia de volta às preocupações de Maia. Alguma coisa a fizera acreditar que eu revelaria minha natureza como lobo a Davi, uma pessoa comum, de fora do tratado, e, por consequência, rasgaria o véu. Era isso que eu precisava compreender e esperava que aquele livro diante de mim pudesse ajudar.