Capítulo 1

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Estou boiando em um mar calmo e caudaloso. Os raios de sol iluminam minha pele transformando-a em ouro brilhante. Apesar de minhas roupas finas estarem molhadas, me sinto quente e confortável. Um sorriso ilumina meu rosto e os sons das gaivotas se misturam com o som da orquestra imaginária tocando uma suíte agradável em minha cabeça.

Eu poderia ficar desse jeito para sempre, mas o momento termina quando sinto o oceano abaixo de mim se revoltando. As ondas surgem caminhando na borda daquele mundo caudaloso, vindo até mim, prontas para interromperem meu descanso.

Os primeiros respingos em meu rosto me fazem engasgar e o que vejo, por fim, são os raios solares – tão gloriosos – serem cobertos pela mortal barreira de água que se levanta ameaçadora à minha frente.

Antes que eu reaja, vejo as águas descendo em minha direção e em desespero sou completamente engolfada pelo mar. As águas revoltas me dominam e arrastam meu corpo para o cerne do mar, para cada vez mais longe de minha calmaria dourada. Eu fui vencida.

***

Acordo engasgada com a água que cai sobre meu rosto. Abro os olhos e a escuridão me salda como se zombasse de mim e me desafiasse a enfrenta-la. Eu não estou salva, outra batalha se desdobra a minha frente, água e escuridão resume tudo o que meus sentidos conseguem captar.

Há algo a mais, um pressentimento forte e, apesar de não decifrar completamente sua mensagem, me apego a ele. "Confie em seus sentidos" uma voz ecoa vinda de algum lugar do meu passado. Quem disse isso, ou quando, eu não sei. Mas tais palavras me são familiares e eu encontro conforto nelas.

Relâmpagos rasgam o céu interrompendo a escuridão por breves momentos, mas mesmo assim meus olhos estão alheios àquele pulsar de luz, pois eu agora os mantenho fechados por causa da chuva.

Quero correr em busca de abrigo, mas a tempestade de água pressiona meu corpo contra o solo lamacento e minha força me abandona quando eu a convoco. Sei que tenho que buscar abrigo, proteção, mas, assim como o mar me dominou, a chuva me mantem sua refém. Tudo que consigo fazer é virar meu rosto para todos os lados na tentativa inútil de evitar que a chuva me sufoque.

Um trovão ribomba, violento, e depois as nuvens se silenciam por tempo suficiente para me permitir ouvir um ruído animalesco. A princípio eu não decifro sua natureza, mas o barulho continua se fortalecendo, conseguindo soar tão alto quanto os trovões que voltam a estrondar no céu.

É um miado de gato, arrastado e lamurioso. Soa na noite escura como um instrumento que, apesar de destoar do restante da orquestra, libera notas poderosas, sobressaindo-se dos demais.

Esse chamado se espalha pela floresta e eu me remexo na tentativa de vê  o animal em meio aos clarões momentâneos provenientes dos relâmpagos.

O miado cessa inesperadamente e em resposta a ele um novo barulho se manifesta quase perdido em meio à sinfonia da tempestade.

Apesar de fraco eu ouço o farfalhar próximo a mim, anunciando algo que me conforta e me apavora simultaneamente. A aproximação de uma criatura é inevitável e eu a sinto cada vez mais perto. Cada passo dado ecoa em minha cabeça contrariando a lógica, como se essa coisa ou pessoa subjugasse a própria natureza. Ela não faz nenhum esforço para esconder sua aproximação de mim, talvez queira chamar minha atenção de alguma forma.

Quando sinto a presença bem próxima de mim tudo se aquieta e a natureza retoma seu papel de protagonista em toda aquela confusão. Os trovões estrondam com mais intensidade, querendo provar algo e um raio parte o céu em dois iluminando por breves segundos aquele cenário, me dando o vislumbre inédito da presença que me faz companhia em meio a esse ambiente caótico.

Acontece rápido e logo a claridade finda. Mas a imagem que se desdobrou a minha frente continua em minha mente como o flash de uma câmera que deixa rastros de sua manifestação mesmo depois de ter partido. Primeiro jugo ser a sombra de uma montanha, mas depois tudo vai se esclarecendo em minha mente e percebo que a montanha tem um formato humanoide.

Antes que minha mente divague por mais quilômetros desse caminho tortuoso e incerto, sinto o impacto daquele corpo humano descendo sobre mim.

Eu não posso vê-la, mas há algo poderoso emanando dessa pessoa que me faz paralisar.

A chuva já não tem poder sobre mim. A escuridão não me assusta mais. Porque nesse momento todos os meus sentidos estão voltados para a pessoa que me recolhe do chão lamacento e me acomoda em seus braços. Sinto-me como uma tábua fina levada pela maré sem esforço algum.

Eu não tenho medo e nem alívio quando ela me acomoda em seus braços. Há apenas um vazio de sensação em meu corpo e alma.

Meus olhos abertos não captam nada, mas mesmo assim eu os foco na sombra quase imperceptível daquele ser que me leva pela floresta chuvosa e lamacenta.

Apoiada contra seu corpo firme eu sou tomada pelo embalo provocado pelo caminhar da criatura e isso vai aproximando minha mente de um lugar onde toda essa confusão finda. Uma calmaria dourada domina seus quatro cantos. Ali é bom e eu me permito flutuar para esse conforto conveniente.

– O que andava fazendo por aqui, garota? – A voz me trás de volta. Eu tento organizar minha mente para encontrar uma resposta satisfatória e me dou conta de que ela não é necessária. A voz não espera por uma resposta minha.

E então me vejo diante de duas descobertas. A primeira me revela que eu estou sendo carregada por um homem, sua voz grave e profunda é impactante.

E a segunda coisa...

Eu estremeço diante da realidade que se revela sem nenhuma piedade, e o medo retorna pela primeira vez desde que esse homem veio até mim.

Minha mente — um espaço vazio —  é apenas um cômodo circular de paredes lisas e ininterruptas, sem nenhuma brecha. Não há portas a serem abertas.

Eu me sinto sufocada e correndo em círculos, tentado achar uma porta ou janela, até mesmo uma pequenina fresta que me ilumine sobre tudo o que eu não sei. De tudo que não está em minha mente. Porque o que poderia está ali fugiu dela. Ou foi retirado dali à força.

O pânico me agita e eu começo a agonizar. Esse vazio não é calmo, é perturbador. Percebendo minha agitação, os braços me seguram mais forte e os passos que me levam pela floresta se intensificam.

Esse branco em minha mente é mais sufocante que a chuva e eu me vejo à beira de um colapso. Minhas forças retornam alertadas pelo perigo que alarma dentro de mim.

Eu sinto uma necessidade de correr como uma louca desesperada. Correr para qualquer lugar, para longe de algo que não existe dentro de mim. Algo que não passa de um fantasma vago e sem consistência.

Meus globos oculares se reviram tentando achar uma rota de fuga do cômodo circular imaginário e de sua opressão. Até que eles pausam diante de algo novo. Um pequeno ponto de luz em meio à escuridão.

Meu corpo e mente se retesam em expectativa. Meu mundo torna-se essa luz enfraquecida que surge tremula por detrás das árvores. Meu único conforto é saber que, a cada passo dado pelo homem que me carrega, eu me aproximo cada vez mais desse ponto de luz.

Então me disponho a esperar e a assistir à aproximação lenta e gradual da manifestação que suga minha atenção. Eu estou eufórica diante da fonte dourada que irradia à minha frente. Minha paciência a um fio de ser rompida.

Minhas mãos agarram a grossa capa que cobre o corpo do homem na tentativa de me posicionar de maneira a poder ver o facho de luz por um ângulo melhor. Sua luminosidade é tudo o que importa agora.

***

Nota da autora:
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O Vazio TempestuosoOnde histórias criam vida. Descubra agora