(10/10)
O homem estava parado a poucos passos da borda do penhasco. A floresta estava à suas costas e dela surgiu um gato preto que caminhou lentamente até onde o homem estava. O gato deu um salto e pousou numa pedra, ficando na altura da cintura do homem.
- Você conseguiu, minha amiga. - Sua voz soou clara e jovial. Seus olhos estavam fixos na cidade que se estendia na planície lá embaixo. - Nunca duvidei disso.
O gato ronronou em resposta. Deitando sobre as quatro patas, pôs-se também a contemplar a cidade do alto.
- O que vai fazer agora? - Perguntou a gata depois de alguns minutos de silêncio. - Para onde planeja ir primeiro?
O homem inspirou profundamente, soltando o ar depois de alguns segundos retendo-o dentro de si.
- Vou permanecer aqui. É uma cidade bonita... - disse com seus olhos voltados à paisagem além do penhasco - e de certa forma mágica. Vou aproveitá-la por algum tempo.
- Você acabou de readquirir sua liberdade e tem o mundo esperando por você... Por que permanecer no lugar que esteve recluso por tantos séculos? Isso é difícil de entender.
- Como você falou... Eu estive recluso esse tempo todo. Distante de tudo, perdido nas catacumbas do subsolo. É diferente de se ter passado uma vida na cidade, vivendo nela literalmente. E além do mais... ela está lá.
A gata ficou remoendo as palavras do homem por um bom tempo, sua calda balançando de um lado para o outro.
- Tive que apagar as poucas lembranças que ela tinha desde que acordou na tempestade. Fiz isso antes que o corpo de bombeiros a resgatasse dos escombros da casa. Não podíamos correr o risco de ter uma humana alegando que foi atacada por uma criatura sobrenatural. Ainda mais numa cidade supersticiosa como essa. Minha irmandade me culparia pela displicência.
- E mais uma vez ela acordará sem memória. Vazia. - A voz do homem soou mais grave do que o natural, quase pesarosa. - Talvez esse seja o destino dela... É seu apego à vida que me faz crer que há muitas coisas esperando por ela em seu futuro. Percebi isso quando a salvei da tempestade.
Ele silenciou-se.
- Você me deve um colar novo agora que o meu antigo está perdido nas catacumbas - a gata tinha um brilho divertido em seus olhos.
- Terei tempo de procurar por ele e devolvê-lo para você. - Rebateu no mesmo tom.
Ele silenciou-se novamente. E depois olhou a amiga felina intensamente.
- Onde a encontrou? - Perguntou de repente.
- Quem? - A gata pareceu confusa, mas depois se deu conta de quem ele se referia. - Ah... Eu não sei ao certo. Depois de muitos anos procurando por um humano com sangue mágico, sem ao menos me deparar com uma pista da existência de um deles, eu estava quase me rendendo ao fracasso. E então ela apareceu na minha frente. Fui até o orfanato onde ela morava e a adotei. Ela era uma boa menina. Se eu tivesse me permitido teria desenvolvido sentimentos por ela. O que seria uma perda de tempo visto que eu apenas a criei para entrega-la a você. - A gata fez uma breve pausa. - Em nenhum momento eu achei que ela sobreviveria. Não mesmo.
O homem ouviu a gata, compenetrado. Seus olhos escureceram-se com as palavras finais dela.
- Se achou que ela não sobreviveria por que apagou a memória dela?
- Para enfraquecê-la. - A gata respondeu sem titubear. - Ela era uma pessoa difícil de lidar. Tinha uma personalidade forte e isso com certeza atrapalharia meus planos. Acredite, se eu não tivesse feito isso, você nunca teria encostado nela. Ela não teria ido de espontânea vontade e isso era fundamental para quebrar a maldição... Eu tinha que fragiliza-la ou tudo teria sido em vão, desde a sua adoção até todo o esforço em trazê-la para essa cidade com uma desculpa esfarrapada.
Ele pareceu distante novamente, perdendo-se na cidade lá embaixo, onde em seu hospital municipal jazia o corpo adormecido que lhe agraciara com uma nova vida.
- Vou procurar por ela - ele soltou.
- Como?! - A gata assustou-se. - Não pode fazer isso.
- Pelo que entendi, você cortou todo laço que tinha com aquela garota. Ela não está mais sob seus cuidados. Não preciso da sua permissão para me aproximar dela.
A gata parecia ter congelado diante das palavras do homem.
- Não pode fazer isso - repetiu. - Não deve procura-la. Ela não tem mais nada a lhe oferecer. Além do mais, se ela voltar a vê-lo algumas lembranças do que houve lá embaixo podem vir à tona, não seria nada muito claro, mas seria o bastante para fazê-la correr de você como uma louca. Deve deixa-la em paz.
Ele parecia não ouvir suas palavras, seus olhos fixos na cidade, um turbilhão de pensamentos explodindo em sua mente.
- Eu farei com que ela escolha ficar comigo.
A gata riu de suas palavras e mesmo assim ele não desviou seus olhos para ela. Apenas a ignorou.
- Seus poderes de mago não funcionarão com ela. Não pode simplesmente seduzi-la com seus feitiços.
A gata olhou preocupada para o homem ao seu lado, tentando descobrir se suas palavras tinham surtido algum efeito nele, mas o que viu não lhe agradou.
- Eu estou aqui do seu lado. - A gata falou quase implorando - eu posso ser uma boa companhia para você... a companheira perfeita.
O homem balançou a cabeça, pesaroso. Ele enfim olhou para a gata e seu olhar pesou sobre ela.
- Há algo inacabado entre nós. Digo, eu e ela. Desde que acordei sem maldição alguma pesando em meus ombros, sinto uma necessidade urgente em ir atrás dela. Eu não posso fugir disso, tenho que encontra-la e vê se ela compartilha da mesma urgência que me acomete.
- Ela vai rejeitá-lo. - A gata falou em tom profético.
- Seria uma pena - ele rebateu - mas não descansarei até ela me escolher. Não usarei minha condição de mago para trazê-la para mim. Saberei ser persuasivo com ela de outro jeito. Eu a farei desejar ficar comigo.
Fim
***
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O Vazio Tempestuoso
Fantasy(noveleta concluída) À princípio tudo era calmaria, até Ela acordar em meio a uma floresta castigada por uma tempestade violenta. Ferida e confusa, tudo que permanece em sua memória é a lembrança de estar boiando em um mar calmo, sob o brilho doura...