| Capítulo Final |

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O som abafado dos saltos ditava o ritmo da jornada passo pós passo sobre a linha imaginária do assoalho cimentado

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O som abafado dos saltos ditava o ritmo da jornada passo pós passo sobre a linha imaginária do assoalho cimentado. A resplandecência da luz lunar a banhava, ofuscada pelas luzes metropolitanas cujo brilho iluminava a escuridão noturna. Como se atraída por um ímã, movia-se flutuante, seduzida pela carência da única coisa que sentia falta.

As curvas de um meio sorriso gracioso nos lábios roxeados explanavam sua determinação, um andar seguro evidenciava a precisão da caminhada. Seu corpo embalado pela sensualidade do tecido voil de um cardigan esvoaçante às suas costas reafirmava a leveza de sua figura feminina, facilmente associada à vulnerabilidade, que tapeava os olhares cautelosos direcionados a si. Mal sabiam eles que a maior ameaça daquela rua escura, era ela.

A ânsia por aquele momento a devorava de dentro para fora. Um encontro tão planejado, tão aguardado. Rara passou semanas na encolha, frequentando a mesma cafeteria que ele, observando-o por cima do jornal que usava para tapar o rosto acompanhado dos meios sorrisos tímidos que soltava, e logo disfarçava ao guardar uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ela sentia falta, e como sentia, mas era fraca e tola demais para fazer algo além de chorar de saudade dos batimentos dele. Preferia viver na saudade, a dar o primeiro passo rumo a uma nova história do mais puro amor.

Por sorte, ela não era a única. Esther saberia conduzir a situação com maestria. Era ousada e destemida, quente e cativante. Era perfeita para o trabalho. Foi então que a timidez se desfez em mistério, o liso se moldou em ondas, e a doçura do floral deu lugar à sedução do preto. Esther Montenegro mandou para o banco de reserva todas as demais versões de si, e assumiu o trono.

A pose superior com que desfilava desimpedida do outro lado do corrimão que delimitava a fila de pessoas barradas na parte externa da boate despertou murmúrios de revolta por cada um que ela deixou para trás. Na boca da porta, o segurança fez menção de anunciar a superlotação da casa, quando algo soou em seu ouvido chamando-lhe a atenção. O rosto de Esther estava virado para a câmera de vigilância, ela sorria minimamente e fitava séria como se envolvesse em seus gestos quem quer que fosse que estava do outro lado do monitor. As portas se abriram facilmente, e como premeditado, ela estava dentro.

O espaço se resumia num breu absoluto cortado por fachos de luzes artificiais em tons de vermelho, capazes de embriagar a cada vez que piscavam. A música eletrônica estrondava os alto falantes e movia os corpos jovens guiados cada um por seu próprio ritmo. Garçons circulavam com baldes de gelo e bebida segurados sobre as cabeças de todos por seus braços sempre fortes e tatuados. Parecia até um requisito para trabalhar ali.

Esther caminhou com dificuldade rumo à primeira mesa isolada que avistou. Enfrentou alguns assédios disfarçados de elogio ao seu pé do ouvido, e seguiu resoluta sem titubear o caminho. Seu passos apenas seguiam, atraídos por um magnetismo surreal que a guiou até ali.

— Por conta da casa, senhorita.

O garçom anunciou ao deixar uma taça borbulhante gim tônica sobre sua mesa, enfeitada por rodelas de limão tão finas quanto transparentes. Não houve tempo para agradecimentos. O rapaz se foi tão rápido quanto surgiu, perdendo-se em meio à multidão abarrotada. Ela olhou ao redor, por cima dos ombros, ensandecida à procura dele. Era capaz de sentir sua presença. Quase poderia escutar a palpitação crescendo gradativamente.

Do topo da escada, ele a observava. Com uma das mãos guardadas no bolso dianteiro, Thomaz apreciava o sabor do espumante como se fosse a última coisa que provaria na vida. Fazia muito isso ultimamente: aproveitar tudo como se fosse a última vez. Provar do gosto da morte muda um homem. Foi preciso sofrer a mais determinantes das paradas cardíacas, e ser cobaia de um milagre da medicina para que aos mais de cinquenta anos, ele aprendesse o valor da vida. Tudo deveria ser apreciado. Desde o café puro às seis da manhã, até a beleza de uma mulher como aquela.

Os últimos meses ocasionaram a maior reviravolta na vida do empresário Thomaz de Carllo. O proprietário da casa noturna Pecar llo viveu um vida dedicada a proporcionar a alegria das pessoas, e somente quando viu a sua chegar ao fim, deu-se conta de que não a tinha vivido devidamente. Em sua segunda chance, tudo foi jogado para o alto. Os negócios foram passados para sócios, e ali ele não passava do dono e visitante. De doente terminal a um jovem cheio de vida à beira da meia idade. Pronto para viver. Pronto para experimentar.

— Por que tenho a impressão que esta dama está me perseguindo?

Thomaz a abordou com um sorriso interessado curvando seus lábios escondidos pelo bigode, rodeados pela fartura da barba branca. Em plena balada, um jornal se encontrava nas mãos de Esther. Ela relia uma notícia, a mesma de sempre.

Milagre medicinal! Em operação rara, empresário ligado a aparelhos passa por experimento da cirurgia de retransplante de coração. Saiba como está a vida de Thomas de Carllo após procedimento inédito na história da medicina.

— Eu posso explicar — sorriu, dissimulada. Quente como o inferno, atraente como o diabo, sedutora como o pecado. Sua aproximação foi lenta, a inclinação foi mínima, e com os olhos nos dele, envolvendo-o como uma serpente, deu o bote. — Eu me apaixonei pelo seu coração. 


Fim.

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