O dia do aniversário de Zoe coincidiu com sua volta às aulas.
Papai a fez esperar o próximo ano para voltar para a escola, e desde que Morten lhe confidenciou que os animais são anjos ela não o viu mais.
Ela quis, mas não lhe escreveu pois sabia que Morten era muito ocupado, afinal, pessoas morrem a todo momento. Mas aquele era um dia especial. Então ela escreveria para ele.
Querido Morten,
Desde que você me ajudou, hoje quase um ano após foi cumprido o meu primeiro desejo: eu voltei para a escola. Foi ótimo! Eu revi meus amigos e fiz alguns amigos novos! Eu vou fazer a terceira série novamente pois ano passado não completei os estudos e perdi muita coisa, mas graças a nosso acordo eu aprenderei muito esse ano. Então, obrigada!
Com saudades, Zoe.
Dessa vez a menina sabia o que deveria fazer, ela havia surrupiado um alfinete de costura quando tia Vivian veio fazer a barra de suas calças novas, furou seu dedo e depositou a gota de sangue ao lado de onde assinou seu nome.
O envelope já estava pronto, a aguardando, e ela colocou a carta dentro e o selou com um adesivo de uma folha de árvore. Verde para combinar com os olhos dele. Então, aguardou ansiosamente aquela voz.
-- Feliz aniversário, pequena! -- Morten diz, parado à janela do quarto.
Ela segue até ele empolgada, e nota em como a luz da lua entra pela janela o iluminando, o deixando estranhamente etéreo. Seu cheiro dessa vez é diferente, terra molhada, chocolate e aquela coisa estranha que ela não sabe identificar.
-- Obrigada! É muito bom fazer nove anos! Porque não veio me ver se sabia do meu aniversário?
-- Porque você nunca mais me escreveu. Imaginei que não quisesse minha companhia.
Morten não queria admitir, mas aquilo o chateou. Ele não foi visitá-la pois não queria forçá-la a nada e nunca faria isso, então ele voltou para sua monotonia e solidão. A observando, claro, mas apenas de longe. Apenas de onde ela não poderia vê-lo.
-- Eu não queria afastá-lo de suas obrigações. Você deve ter muito trabalho.
Ele sorriu. Zoe estava mais alta, seus cabelos estavam começando a crescer, escuros. Mas seus olhos continuavam grandes e curiosos. E o olhavam atentamente. Morten sentou-se no chão, ainda próximo à grande janela do quarto e ela o acompanhou, sentando-se de frente para ele.
-- Pode me chamar sempre que quiser, não me atrapalha. O tempo é diferente quando estou aqui.
-- Como assim? -- ela pergunta.
-- É como se o tempo parasse, como se o mundo aquietasse para que possamos conversar. Nesse momento só existimos nós dois.
Zoe olhava para ele, encantada, admirando aqueles olhos luminosos pessoalmente. Olhos que ela via em seus sonhos quase todas as noites.
-- Isso parece ser importante. -- ela diz.
-- Você é importante.
-- E as outras pessoas?
-- Todos são importantes, Zoe. Mas você... -- Morten pensa em uma maneira de explicar -- Você é minha amiga.
-- Se somos amigos então você pode vir me visitar mesmo que eu não mande cartas, não acha? É isso que amigos fazem.
Morten sorri, pensando que Zoe está se tornando uma menina de opiniões e personalidade fortes. Ele gosta disso.
-- Tem razão. Prometo que virei vê-la, no momento oportuno.
Eles se encaram e Zoe sente mais uma dúvida martelando em sua cabeça.
-- Eu posso fazer uma pergunta?
-- Pode fazer todas as perguntas que quiser, pequena.
-- O seu cheiro está diferente dessa vez.
-- Sim, porque você está diferente. -- ele nota que Zoe fica confusa -- Eu tenho o cheiro daquilo que você mais gosta misturado ao meu próprio cheiro. Imagino que seja para diminuir o medo que os mortais sentem de mim.
-- Entendi!
-- E então? Qual cheiro você sentiu hoje? -- ele pergunta, sorrindo.
O sorriso dele está maior, Zoe percebe. Mais aberto, mais sincero e mais… feliz.
-- Antes você cheirava a morangos. Agora, cheira a chocolate! É um cheiro bom. -- ela diz, ficando estranhamente tímida.
Morten percebe e, para poupá-la de se sentir constrangida, muda de assunto.
-- Você tem aula amanhã, pequena, está ficando tarde. -- ele a lembra.
Zoe se levanta rapidamente e segue até sua cama, deitando-se, se aconchegando às cobertas e travesseiros.
-- Quer que eu fique até que pegue no sono? -- Morten pergunta.
-- Você quer ficar?
-- Sim. Eu quero sim.
Zoe sorri. Com os lábios e os olhos. O sorriso mais lindo que Morten viu até aquele dia.
-- Boa noite, Morten!
-- Boa noite, pequenina.
Ele então começa a cantarolar a canção de ninar que ouviu Zoe murmurar, quase um ano atrás. E a pequena logo adormece, ainda tendo a sombra daquele sorriso nos lábios. E Morten, bem, ele passa mais um longo tempo ali, cantando para ela, enquanto ainda só existem os dois no mundo.
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Cartas à Morte
KurzgeschichtenSentem-se confortavelmente para ouvir essa história. A história da morte. A história da vida. Zoe tem oito anos e luta contra a leucemia há alguns meses. Seu tempo está quase acabando quando conhece a morte pessoalmente. Morten, o ceifado...