I. Aconchego em meio à tempestade

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O vento denso e tempestuoso se colidia contra o rosto do rapaz de madeixas rosadas como uma onda despencando na orla, atingindo-o forte. As lufadas de ar que formavam correntes grossas lhe davam um olhar ainda mais agraciado ao passo em que sacolejava levemente a franja a frente de seus olhos.

Em sua volta, pétalas e mais pétalas de flores de cerejeira lhe rodeavam como um redemoinho róseo, lindo e natural de se ver; e o garoto se divertia com isso, o sorriso em seus lábios cheios e avermelhados comprovava isso. Os raios solares penetravam em meio ás frestas deixadas pelo vento e iluminavam os orbes claros e cor de rosa e...

—E o nariz dele parece uma batata. —larguei o conjunto de lápis que tinha em mãos em cima do meu caderno de desenho bufando irritadiço.

Aquele meu esboço estava extremamente assimétrico e mal feito, sem contar que eu nunca conseguia transmitir o que realmente queria naqueles amontoados de traços quando se tratava daquele bendito garoto. O garoto dos meus sonhos.

—Aish! —retirei o headphone abruptamente dos meus ouvidos pousando-o em meu pescoço na medida em que ainda ressoava alto dele a música Things We Lost in The Fire do Bastille. —Por que eu não consigo desenhar esse maldito rosto se ele é tão familiar pra mim? Eu tenho sonhado com ele quase todos os dias, deve ter alguma...

—Saia já dessa casa, seu miserável! Eu não aguento mais olhar pro seu rosto cínico e nojento! —os gritos de minha mãe ecoaram em direção ao jardim. O som de provavelmente algum outro vaso caro sendo jogado e estilhaçado pela parede a fora tomando conta dos meus sentidos.

Suspirei, ajeitando-me naquela posição corriqueira de flor de lótus, em que eu sempre me sentava, depositando todo o meu material de desenho ao meu lado na grama e massageei as minhas têmporas a fim de aliviar o estresse. Provavelmente, a essa etapa do campeonato, eu devia estar acostumado com mais uma das brigas corriqueiras dos meus pais, mas ainda assim elas me traziam irritação. Quando mais novo sentia mais tristeza que tudo, hoje em meados dos meus dezoito anos, só me trazia raiva e o sentimento de querer logo sair dessa maldita casa e morar sozinho.

No entanto tinha um exato motivo para que não tivesse o feito até esse momento. Tudo bem, não era só um. 1) Não havia alcançado a maioridade coreana e infelizmente meus pais não me emancipariam nem mesmo se eu implorasse; 2) Estava sem um trabalho fixo, apenas fazendo alguns bicos por aí de vez em quando e 3) Tinha me acostumado até demais em viver no jardim da casa que eu tanto odiava, principalmente com a cerejeira que durante anos fora a minha única companhia, ouvindo todas as minhas queixas, os meus choros e velando o meu sono.

Muitos poderiam me considerar um solitário nato. Bem, não era de todo uma mentira. Todavia, cuidar daquele jardim, viver abaixo daquela árvore com flores tão bonitas de se ver, capturar com nossos orbes, me fazia bem como nenhuma pessoa fizera até hoje. Nem mesmo os meus pais. Então, basicamente era o suficiente para mim.

Era o suficiente porque eu nunca recebi tanta reciprocidade, carinho e amor, como quando eu cuidava bem daquelas pequenas plantas, do mesmo jeito que cuidei daquela pequena muda de cerejeira, e elas me agraciaram com suas respectivas belezas distintas e naturais, crescendo saudáveis.

A verdade era que eu nunca entendi porque meus pais resolveram me conceber. Se eu tinha sido um engano, um erro não calculado, nunca me disseram. Eles não eram tão baixos assim, até certo ponto. Entretanto, nunca foram meus amigos também, vivendo sempre em seus mundinhos capitalistas e superficiais sem ao menos olhar ao redor para saber se seu filho ainda estava vivo, saudável ou machucado...

Eles nunca souberam quando realmente senti falta de afago, nunca souberam também quando parei de me importar com a escassez de atenção.

Vasculhando por entre todas as más memórias, só conseguia encontrar cravado em meu consciente um único momento familiar, a única vez em que recebi uma demonstração de afeto por parte de um deles, esta sendo a minha mãe, isso quando eu tinha sete anos.

Estávamos nos arrumando para ir à um desses jantares beneficentes, onde minha mãe insistia que eu fosse o mais formal possível apesar de minha idade. Por essa mesma razão ela ajeitava a pequena gravata borboleta em meu pescoço com perfeição. Lembrava-me perfeitamente de quando ela se afastou para checar-me por inteiro, passando a mão pelas lapelas do meu terno a fim de retirar qualquer amasso e fissura, arrumando as mechinhas do meu cabelo logo após. Naquele momento, pude perceber os seus olhos marejados.

Naquela época eu não entendi, mas hoje sabia que aquele olhar era o de: "Desde quando o meu menino cresceu tanto assim que eu não percebi?", por isso dava créditos a ela por isso. Ela tinha se permitido sentir a minha falta, nem que fosse uma vez sequer. E como eu havia dito, o pouco era o suficiente para o meu eu criança, assim como para o meu eu de agora.

—Em meio a toda essa bagunça em que eu e seu pai nos metemos, em meio a todos os erros e obrigações, você foi o nosso maior acerto, filho. —aquela havia sido a primeira e única vez em que a ouvi dizer algo de bom a meu respeito.

Cada palavra trazia um quê de melancolia que pesava, eu sabia disso. Porém, logo a sua máscara dura e impenetrável estava posta em sua face novamente, já que ela não podia se permitir fraquejar em frente a seus inimigos comerciais. A senhora Jeon se recompôs e virou as costas deixando-me sozinho com a tarefa de calçar os sapatos, fazendo-me ansiar como nunca antes que aquele momento se repetisse. Fazendo-me colocar toda a minha esperança nisso e consequentemente me tornar esse jovem-adulto que nunca soube o que era amar de verdade, o amor entre duas pessoas. O amor aconchegante, feliz, o amor familiar. Nem como era ser amado.

Ah, eu me lembrava tão bem de quando todo esse inferno começou, as brigas e intrigas, indiretas jogadas ao ar, que o gosto agridoce e ao mesmo tempo amargo das lembranças tomava o meu paladar. Até mesmo o registro olfativo ajudava-me a ambientar tudo aquilo, já que eu nunca conseguia me esquecer e sempre sonhava com algumas das discussões.

No começo era tudo mais tranquilo, comparado ao escarcéu que hoje se instalara. Meus pais conversavam baixinho entre cochichos e olhares condizentes, algo sobre traição vindo à tona de vez em quando aqui e acolá na mesa de jantar, mas sempre que aumentavam o tom de voz um decibel a mais, diziam que precisavam ter uma conversa de adulto e partiam em direção ao escritório deixando-me sob a supervisão de uma governanta.

E o que eu mais queria era que as coisas permanecessem daquela maneira, no entanto, como podem imaginar, não aconteceu.

Aquela mínima preocupação que tinham com o fato de eu estar observando e ouvindo toda a discussão pareceu esvair-se ao vento como pó. Brigavam em qualquer canto da casa, esgoelando-se para provarem para o ego um do outro quem mandava mais em quem, quem era o certo e quem era o errado. Cada dia eles chegavam com um motivo diferente, até que um dia eu fui um deles. Não passei de um argumento sujo e baixo para afetar um ao outro.

A expressão chocada de minha mãe ao ouvir o senhor Jeon trazer o meu nome como tópico para aquela maldita discussão, comigo ali, sentado na sala brincando com meus conjuntos de giz e tintas, nunca deixara a minha mente.

Ela parecia impotente, catatônica. Tinha sido deixada sem argumentos pela primeira vez em uma briga, por isso, sem saber muito o que dizer ou o que fazer, mandou-me ir brincar no jardim, perto da cerejeira que cultivavam, até que me chamasse pra entrar novamente.

E foi o que eu fiz, mas nem mesmo a distância e paredes grossas daquela pseudo-mansão continham os seus gritos, o choro, a raiva de emanar e me atingir. E eu odiava. Odiava toda a gritaria, as palavras de baixo-calão.

Odiava tanto que naquele mesmo dia em que fui mandado pela primeira vez para debaixo daquela pequena cerejeira, caí no sono em meio às suas raízes todo encolhido e com as mãos cobrindo-me os ouvidos fortemente porque eu não queria ouvir. Não queria mais presenciar tudo aquilo.

Então, antes de pegar totalmente no sono, procurei pedir algo de forma ingênua. Pedir para que aquilo tudo parasse, que meus pais agissem como os dos meus coleguinhas de escola e não brigassem, ao menos não em casa, não em minha frente.

Não funcionou. O que coube a mim me acostumar e sobreviver, tentando não odiar cada dia mais aquele lugar. O lugar que deveria ser meu porto seguro, minha casa.

Anos foram se passando e eu não precisava mais de ordens para me retirar de dentro de casa e ir em direção ao jardim para que eles gritassem o quanto quisessem. Pegava meu material de desenho e pintura, meu headphone e nem olhava para trás ao sair daquele inferno limitado, encontrando o meu aconchego bem ali, a alguns metros. Sob a árvore de flor de cerejeira.

under the cherry blossom tree | pjm + jjk / jikookOnde histórias criam vida. Descubra agora