quem brinca com o fogo... queima-se

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Heloísa

Rodeados pela atmosfera suja e abandonada do armazém, o silêncio colocou-se, de forma constrangedora, entre nós. O seu olhar já não se assemelhava a labaredas avermelhadas de fogo e os meus pulmões já não se enchiam e esvaziavam com a mesma rapidez e inconsistência de há alguns minutos. O Marcos estava, efetivamente, menos agressivo e raivoso e essa era a única razão para a minha descontração, suave e lenta, mas não deixando de ser isso mesmo: um suspiro de alívio a escapar silenciosamente por entre os meus lábios.

A luz do sol, que já estava quase a encontrar-se com as ondas salgadas do mar, ainda concebia uma certa iluminação ao interior do espaço. Os pequenos raios de sol penetravam nas minúsculas, retangulares e altas — atendendo ao facto de apenas existirem entre o teto e a parede —, faziam os possíveis para nos providenciar claridade suficiente para assistirmos aos micro-grãos de pó a descer, ao som de uma brisa impossível de ser sentida, em direção ao solo.

Para além do pó, eu também conseguia ver, ainda que sem muitos detalhes, o rosto do português.

Sem dizer nenhuma palavra, o Marcos levou a sua mão até ao meu rosto, posicionando o seu polegar na minha bochecha e os restantes dedos a caírem sobre a minha mandíbula. Esbocei um pequeno sorriso ao sentir o seu dedo passar-me pelos lábios e fechei os olhos ao sentir a sua respiração cada vez mais próxima. Uma respiração regular, leve... Calma.

— Helo...

Fala.

O seu polegar prosseguia com as carícias enquanto os outros dedos seguravam o meu rosto com firmeza, mais do que seria necessário. Sentia-o a pressioná-los com força contra a minha pele e contive a respiração por breves segundos, enquanto tentava compreender qual era o seu objetivo.

— Tu... Tu tens medo de mim. Como é possível, depois de todo este tempo a teu lado... Que tu sequer penses na hipótese de eu te magoar, deliberadamente? Eu que te protegi de todos os gajos perigosos da periferia; Eu que te trouxe para o negócio porque não queria que andasses na rua, como uma mendiga; Eu que, sempre que te toquei, tinha boas intenções! Porque não confias em mim, Heloísa?

Era isso. Ele estava a provocar-me medo a fim de comprovar que eu, realmente, me sentia assustada e, de certo modo, ameaçada com a sua presença.

Tudo aquilo que dissera era inteiramente verdade... Bom, pelo menos, de um ponto de vista. Ele tinha-me salvo a vida, não era mentira. Mas fê-lo porque quis. E o facto de me ter salvo não era sinónimo de ser uma boa pessoa. Pessoas más já tomaram decisões boas em algum momento das suas vidas, certo?

— Eu confio em você. Tu sabe disso. — Dei de ombros, tentando parecer, agora, mais descontraída e menos amedrontada (afinal, já tinha percebido o seu objetivo e não queria dar-lhe razões para desconfiar de mim).

— Não inteiramente.

— Tal como tu não confia em mim inteiramente.

— É justo.

Parou de me apertar. Senti uma sensação de alívio percorrer o meu corpo mas não deixei que isso transparecesse para o exterior. Desta vez, estava segura.

— Bom... Temos que falar de assuntos importantes, Helo. — Deu uma volta de cento e oitenta graus, virando as costas para mim, e começou a caminhar em direção à porta de madeira que levava para o pequeno escritório.

Segui-o, presumindo que se tratasse de algum assunto... sexual. Como sempre se tratava.

Sentou-se na sua cadeira, desgastada e envelhecida como se tivesse sido comprada há uma centena de anos, e fez-me sinal com os dedos para que me aproximasse, ficando entre ele e a sua secretária. Assim o fiz. Fechei a porta atrás de mim e encontrei o meu lugar sobre a mesa, deixando os pés apoiados na parte visível do assento, ou seja, entre as suas pernas.

The Hideout | sebastián coatesWhere stories live. Discover now