Capítulo I: "2030"

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O ano é 2030. Sam acorda e como faz todos os dias vai até a janela do seu quarto para fazer sua oração silenciosa enquanto olha para o céu. Não há um dia sequer em que ela não se lembre de quando ao abrir a janela seus olhos podiam ver os pés de açaí plantados em seu quintal. Agora, vivendo em Lavras, Minas Gerais, quando olha para fora tudo o que Sam enxerga são os montes, para os quais ela eleva seus olhos perguntando-se de onde e quando virá seu socorro. As estações da vida mudam e há um tempo para tudo, já disse o sábio. Sam não é mais apenas uma menina que acabou de conhecer a teologia reformada, hoje ela é uma mulher, esposa e mãe, com problemas e dramas diferentes dos de uma jovem.

Se a Sam do passado pudesse olhar para o futuro e ver quem se tornou, não poderia ficar mais feliz. Aparentemente tem tudo o que sempre desejou ter, após ter se formado em letras, passou alguns anos em São Paulo dedicando-se ao curso de teologia na Universidade Mackenzie. Atuando agora como professora e teóloga, vive cansada de ter que explicar às pessoas que mulher pode sim ensinar numa escola, mas não num templo. "É cansativa a vida da mulher crente" é a frase mais repetida por Sam. Mas quem a vê na fila do pão lendo o jornal em seu tablet implantado no pulso que abre uma tela tridimensional, não imagina os dilemas que estão sendo enfrentados. Viver num estado onde não se come o verdadeiro açaí com carne, mas sim um sorvete que chamam de açaí, e ainda por cima com frutas e doces como complemento é uma das coisas que a Sam do passado não ficaria feliz se tivesse visto. Mas esse é um problema pequeno, na verdade, por incrível que pareça trocar o açaí do Pará pelo de Minas foi algo que Sam teve muita facilidade em fazer.

-No fim, meus amigos do sudeste estavam certos, berro!- dizia ela.

Apesar das circunstâncias que tem tentado desanimá-la, hoje é um dia alegre pra Sam. Sua amiga Jess virá visitá-la depois de muito tempo. Desde que o Sul se separou do Brasil e se tornou um país independente o acesso entre os dois países se tornou bem difícil. Quem quer viajar passa por um longo processo burocrático até ser autorizado a cruzar os territórios. A vantagem é que as passagens ficaram mais baratas, já que uma viagem internacional é mais barata do que uma viagem dentro do próprio Brasil.

Depois de sair do trabalho e buscar o pequeno João Calvino na escolinha Sam agora está em casa tirando os pães de queijo do seu forno que pode ser facilmente dobrado e guardado dentro de uma gaveta. Joãozinho não acredita quando sua mãe conta que há dez anos atrás as pessoas precisavam de gás para usar um fogão.

-Falas como uma louca, mamãe - diz ele cada vez que Sam conta como as coisas eram feitas antigamente.

-Ok João, a tia Jess está quase chegando então preciso que você ligue o robô doméstico pra arrumar a casa por favor, tudo bom?

-Mamãe, essa casa é sua casa, nós deixamos ela limpa pra você.

-Você é um amor meu filho, mas lembra que não quero ver você citando esse tipo de música enquanto viver debaixo do meuteto. Como é que se diz aqui em casa? Fogo nos?

-Hereges! - ele respondeu e os dois riram jubilosos.

Logo depois Jess chegou e a alegria de Sam agora estava completa.

-Eu trouxe um presente pra você Joãozinho - disse Jess enquanto entregava um exemplar de As Crônicas de Nárnia ao menino - Sua mãe falava que iria ler desde que nos conhecemos e até hoje não leu, mas você vai ler.

-Égua mana, até hoje sou a única dos webmigos que nunca leu Nárnia, sofro kkk.

-Agora você vai ter o privilégio de ler C. S. Lewis para o João Calvino - disse Jess rindo - até hoje não acredito que você deu esse nome pra ele.

-Lembra que o Matt queria chamar de Charles Spurgeon? Rimos muito e eu disse: nome de batista no nosso filho não. Se eu deixasse logo ele iria querer batizar por imersão também. Não deixei mesmo.

-Eu lembro bem, vocês conversaram isso junto com todos nós. Acho que o Jon deve até ter gravado. O auge.

-Ai que pena que ele e o Rada não puderam vir não é mesmo.

-Pois é, até falei com eles pra virmos todos mas o Jon está viajando em turnê lançando o último livro dele e o Rada está proibido de sair de casa por uns dias porque está com muita radiação acumulada no corpo e pra não ser um risco pra outras pessoas ele só pode sair quando for seguro.

-O próprio Chernobyl, coitado. Ele conseguiu vir pra cá na celebração das minhas bodas de cerâmica, há dois anos. Não foi apenas uma festa, mas um culto - nesse momento o semblante de Sam caiu, pois se lembrou de como estava feliz com seu casamento há um tempo atrás. Após um suspiro profundo, demonstrando grande tristeza ela continuou: -E esse ano estou aqui sozinha, na semana em que completamos 11 anos.

-Ai amiga... Você quer conversar sobre isso? Como vocês estão agora? Alguma melhora?

-Não está sendo fácil, como diz aquela música da Kátia Cega. Mas eu não sei o que fazer. O Matt ficou um ano e meio sendo médico em zonas de conflito. O João chegou a esquecer dele, até me perguntou se o papai existia mesmo ou era fan fic. O Matt passou por muitas coisas lá e mal conseguíamos nos comunicar durante todo esse tempo. E ele voltou tão abalado e diferente, perdemos toda aquela conexão que sempre tivemos, parecíamos dois desconhecidos. Ele está fazendo terapia, mas é um processo longo. E como a convivência estava difícil concordamos que poderia ser melhor ele passar um tempo na casa dos pais.

-Mas ele ficar na casa dos pais numa data que vocês deveriam estar comemorando não faz sentido Sam...

-O pior de tudo é que eu já não sei mais o que faz sentido.

Quando disse isso, lágrimas começaram a correr pelo rosto de Sam. E de repente não eram apenas lágrimas, mas um verdadeiro pranto de tal forma que tudo o que Jess pôde fazer foi abraçá-la. Há momentos na vida em que palavras não conseguem dizer o que um abraço consegue. Mas depois de um tempo, quando o abraço já acolheu e amparou aquele coração quebrado, as palavras são necessárias, assim como a chuva que cai sobre a terra seca é necessária pra transformar a sequidão em jardim. E foi isso que Jess fez, deu o tempo que Sam precisava pra chorar e em seguida olhou fundo em seus olhos e disse: -Amiga, agora é hora de você trazer à memória o que pode te dar esperança.

The Presbyterians - Volume IIOnde histórias criam vida. Descubra agora