Capítulo 1

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Prólogo

Serra da Arrábida, 2006

Era bom demais para ser verdade. Marta não queria acreditar que o cão que corria ao longo da praia há minutos e agora a fitava com os uns olhos meigos e velhos, fosse a Cuca.

Um assobio vigoroso fez com que o animal estancasse nas quatro patas, levantasse as orelhas na direção do som e ficasse pronto para partir. Ganiu para Marta, hesitou olhando-a mais uma vez, e correu até ao dono que a esperava com a porta do jipe aberta saltando lá para dentro de imediato.

Marta não quis olhar. Com o coração aos saltos, como se ainda fosse adolescente, preferiu ficar na dúvida. Era demasiada coincidência para que o acaso os tivesse reunido ali, naquela praia onde outrora foram tão felizes para depois os separar de novo.

Não era Afonso.

Não podia ser.

Decidiu.

Naquele instante, decidiu também que era uma palermice estar ali sentada a apanhar frio, à espera que o passado surgisse intacto só para ela o poder agarrar no momento em que o perdeu, e seguir para o futuro, sem perdas e danos. Estar ali, no local onde pescavam e passavam as férias de verão, não lhe ia trazer ninguém de volta, muito menos ele, o homem que sempre amara. Afonso devia estar casado, feliz, e nem se lembraria mais dela. Fora tão tola em pensar que ele se lembraria da pirralha com quem brincou, trocou promessas de amor e vida, e alguns beijos quase castos. Esperou tantos anos que ele a procurasse que, quando conheceu Jorge aceitou a dedicação dele como uma benesse. Estava longe de adivinhar que o doce e cavalheiro Jorge, o grande cirurgião, o seu marido, era um desposta narcísico que em pouco tempo se revelaria e a faria querer fugir dele, com alguns continentes de permeio.

Arrumou a cana e todo o estojo de pesca, deitou o isco à água e dirigiu-se lentamente para o carro com o pensamento nos olhos meigos do animal. Talvez Afonso tivesse dado a cadela. Talvez fosse uma coincidência, e o animal – agora que pensava nisso -, ser apenas meigo com as pessoas, apesar do seu ar intimidador. Fosse o que fosse, simpatizara com ela.

Dali a Lisboa era um pulinho e em breve estaria em casa para descansar e, amanhã, seria mais um dia de muito trabalho na clínica, mas, por enquanto, ia aproveitar o resto do dia para efetuar umas arrumações em casa.

Subia a serra, em marcha lenta, de janela aberta, apanhando o ar frio do inverno, observando a natureza verdejante ao longo da estrada, o rio Sado lá em baixo, espelhando o verde da serra e, dando graças a si própria pela coragem que tivera em cortar com a sua outra vida, com Jorge. Subitamente ouviu um estrondo de algo a embater em chapa e um grunhido de animal, estridente, como se estivesse a morrer, logo seguido de outro choque mais violento. Inconscientemente levou o pé ao travão e reduziu a marcha do carro ao máximo que pode.

Não tardou a avistar o motivo de tanto barulho. A uns duzentos metros, um jipe preto estava enfiado na parede de rocha da serra e, no meio da estrada, um javali enorme, jazia, no contraste do sangue vermelho com o negro do alcatrão. Morto pelo embate com o jipe.

Alguns carros rodearam o animal e seguiram em frente. Apenas um abrandou um pouco mais à frente e parou na berma. Marta parou o seu carro a uma distância de segurança do veículo acidentado, e correu a observar o estado do passageiro.

O homem estava caído sobre o volante, aparentemente inconsciente, e um cão grande lambia-lhe a cara e gania aflito, como a pedir ajuda para o dono acidentado. O animal empoleirado no banco do pendura, demostrava uma agitação de sofrimento.

A enfermeira experiente e habituada a situações de emergência entrou em acção.

Marta pediu ao outro condutor que fizesse a sinalização de acidente e ligasse para a emergência médica, enquanto ela tentava perceber os sinais vitais do homem acidentado. Desviou-lhe o cabelo desgrenhado da testa para tentar perceber de onde escorria o sangue que sujava o volante e, ao mesmo tempo que verificava que ele tinha uma ferida na testa, provocada por uma pedra que se soltou da ribanceira e que entrou no carro partindo o vidro dianteiro, abafou um grito ao reconhecê-lo.

Respirava e a pulsação era irregular. Estava vivo.

As lágrimas saltaram-lhe dos olhos sem que ela conseguisse ter mão nelas. Pareciam ter vontade própria.

O cão saltou para o banco traseiro enquanto ela tentava imobilizar Afonso até a equipa de socorro chegar. Tantos anos sem o ver e encontrava-o entre a vida e a morte. Limpou-lhe o sangue da cara e tentou proteger a zona do cérebro onde a pedra tinha embatido. A ferida era feia e tinha a certeza que o osso estava fracturado.

Afonso não podia morrer.

Ela não o podia deixar morrer, não agora.


A Cápsula do TempoWhere stories live. Discover now