Galopim, 2016
Afonso largou o casaco de motard, em cima da cadeira, na entrada da casa. As entranhas fervilhavam-lhe de emoção e de saudade de Marta. Podia jurar que conhecia a figura que vislumbrou do outro lado do rio, embora tivesse a cabeça coberta por um gorro de lã. Se não soubesse que Marta estava no estrangeiro, ia jurar que era ela que observava o local onde enterraram a cápsula do tempo quando eram adolescentes, e onde estava enterrado o segredo que ele guardava desde aquele tempo.
Mas não podia ser Marta.
Rumou até ao escritório e sentou-se na secretária, esperando resolver alguns assuntos pendentes, tais como verificar se os presuntos espanhóis, e o vinho de reserva especial, tinham sido despachados da origem diretamente para as suas lojas. Verificou a localização das encomendas através do link no email do fornecedor. De manhã estariam em Lisboa. Tinha que lá estar para receber e verificar a qualidade dos produtos. Gostava de ser ele a verificar as encomendas. Era o olho do dono que engordava o negócio, sempre ouvira dizer ao avô, e confirmava que o velhote estava carregado de razão.
Sempre que se deslocava a casa visitava o local onde ele e Marta tinham enterrado o tesouro, sob a forma de cápsula do tempo, que supostamente ficaria na memória dos dois. Mas o tempo muda as pessoas, e nem sempre para o bem. Marta esquecera-se dele e, depois de todos os rumores que circularam pela cidade acerca de si, nesta altura, mesmo passados tantos anos, seria persona non grata junto da família dela. Mesmo que se encontrassem de novo, Marta, não quereria saber deles e do que viveram na época.
Desde que o pai falecera, Afonso, ia com frequência a casa da mãe e, muitas vezes pensava em ficar de vez, e dirigir os negócios há distância. As terras que herdara do pai, estavam meio abandonadas e tinha ideias para cultivar produtos hortícolas gourmet em grande escala para os restaurantes ou mesmo exportar. Lisboa era perto e conseguia vender produtos frescos sem grande logística e estava a estudar o assunto da exportação. A ideia andava a fermentar na sua cabeça, fazia algum tempo e, a proximidade com a propriedade dos Ramires ajudava. Quem sabe se um dia conseguia por os olhos em cima de Marta numa das visitas esporádicas que fazia à família. Marta nunca lhe saíra da cabeça mesmo depois de a saber casada. Voltou a atenção para o ecrã do computador e pensou em Maria e em como ela estaria a safar-se com as lojas, sobretudo nesta época natalícia. Não podia deixá-la sozinha mais tempo, não era justo, ela já ajudava tanto, aliviando-o de muito trabalho.
Maria safava-se muito bem sem ele, a cuidar das lojas, e Afonso tinha total confiança em Maria, mas só nesse aspeto. A sua única preocupação era Beatriz que, apesar de não lhes dar problemas, à mãe e a ele, tinham pavor que lhe acontecesse alguma coisa que lhe desgraçasse a vida. Bia era uma jovem temerária que tinha uma vontade enorme de descobrir o mundo - e nisso eram muito parecidas - mas a mãe e ela chocavam-se muito e, amiúde, era ele que tinha de servir de árbitro entre as duas. Tinha terminado os estudos secundários e queria seguir relações internacionais. O seu maior sonho era trabalhar no estrangeiro, de preferência em Londres.
Londres.
Era lá que ela estava.
Marta. A sua Marta.
- Então filho, já voltaste do rio? Um dia tens que fazer a tua vida sem fantasmas. Essa rapariga ainda te assombra – observou Joana Simões ao olhar para o seu único filho.
- Só o meu coração mãe. Assombra o meu coração, mas não contes a ninguém – riu-se. - De resto estou bem. Só tu sabes, mais ninguém precisa de saber, dona Joana – e voltou a sorrir com aquele ar enigmático que tanto chamava a atenção do mulherio.
Joana colocou a mão no ombro do filho e sossegou-o. Aquele segredo – que Marta continuava no pensamento de Afonso - morreria com ela. Afonso era um homem bom e justo e o que mais lhe custava era ouvir dizer que ele esturrara o dinheiro do avô e não estudara. Mentiras, só mentiras. O povo da aldeia falara de Afonso durante muito tempo, até arranjarem assunto melhor e mais escabroso, e depois esqueceram-se da sua existência. O povo tinha memória curta, para tudo.
- Vou para Lisboa ainda hoje, mãe. Prometo voltar no próximo fim-de-semana e talvez fique mais tempo. Quero só finalizar uns negócios com Espanha e depois fico descansado uns dias, aqui contigo. Tenho umas ideias para as terras da várzea que queria explorar melhor e preciso de fazer um estudo do terreno. Acho que vou voltar a cultivar as terras – disse para a mãe.
- Olha Afonso, ainda sou capaz de cuidar de mim, não preciso que estejas sempre aqui. Eu sei porque vens – atreveu-se a dizer. – Coração de mãe nunca se engana. Mas se queres cultivar as terras, sabes que nada me daria maior prazer.
Afonso olhou a mãe com dureza. A última coisa que queria era que sentissem pena de si. E parecia-lhe que ela o via como um coitadinho.
- Não me olhes assim. Dá-me pena ver-te, ano, após ano, mês após mês, semana após semana, a rondar a várzea, em busca dela. Ela não volta Afonso. Está casada com um cirurgião de Londres e nem quer saber da família dela. Consta que ela saiu do país para não ter que carregar com a irmã. Aquela irmã é um fardo para ela, sabias Afonso? Ou nunca pensaste que a Marta se tornaria numa pessoa assim?
- Mãe! Fica-te mal pensares essas coisas da Marta. Quando eu precisei, ela e a família, sempre me acolheram e lamberam as minhas feridas. Já te esqueceste quando o pai estava naquele estado enlouquecido?
- Não, não esqueci. É verdade que te ajudaram. Mas depois que ela estudou não quis saber mais de ti – disse Joana, na esperança que ele a esquecesse.
- Isso não é verdade. O pai dela proibiu-a de andar sozinha comigo pela várzea, e eu compreendo. Naquela época eu estava um homem e Marta uma jovem muito apetecível. Ainda bem que nos afastaram. Não sei o que poderia ter acontecido, mas a nossa vida seria diferente hoje se continuássemos juntos e não sei se seria para melhor.
- Sobretudo não tinhas encontrado a Maria. Já seria algo muito positivo – disse não escondendo a antipatia pela mulher.
- Não embirres mais com a Maria, mãe, peço-te. E não vamos falar mais do passado.
- Como queiras. Vou acabar o jantar.
Dona Joana saiu, remoendo as suas mágoas que não podia revelar ao mundo, fechando a porta do escritório atrás de si, e Afonso recostou-se na cadeira de couro macio. Houve tempos em que aquela casa era um autêntico manicómio com os gritos do pai e os seus atos de verdadeira loucura a destruir tudo quanto apanhava na frente e a sová-lo quando ele era criança. Por vezes, os gritos ainda ecoavam nos seus ouvidos, mas isso era passado e ele já não estava mais ali, felizmente. Tinha pena do pai e lamentava nunca se terem conhecido noutras circunstâncias. Adérito era um jovem forte e sem medo quando embarcou para Angola ciente que ia ajudar o seu país a ganhar a guerra contra os pretos, e voltou um destroço humano, enlouquecido pelas atrocidades que viveu nos campos de batalha. A mãe convenceu-o a perdoar-lhe, com as descrições que fazia do pai enquanto ser humano, antes de ele ter partido para Angola, mas Afonso apenas tinha aquela imagem cravada na mente e era-lhe difícil perdoar tanto maltrato, ainda que o pai não estivesse consciente do que fazia por vezes. Precisou muito do pai, como agora Bia precisava dele e, jamais iria desiludi-la.
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A Cápsula do Tempo
Storie d'amoreDEGUSTAÇÃO Naquela fatidica tarde, Marta Ramires, estava longe de imaginar que iria encontrar o amor da adolescencia, Afonso Simões, às portas da morte, depois de vinte anos de separação por forças maiores que eles. Se Afonso e Marta pensavam que de...