O dia amanhecera soalheiro e o cantar dos galos da quinta acordara as crianças desejosas de se reunirem na lezíria para brincarem. Afonso, Sara, Marta vinham do norte e, Tiago, Maria e Sílvia de sul. Juntos, percorriam os campos em redor dos grupos de homens e mulheres que trabalhavam nas valas de arroz e nos campos semeados de melão, melancia, tomate e milho. A única coisa que os barrava eram as cercas dos touros bravos. Por aí não passavam e, sempre que um dos campinos os avistava ralhava para que se afastassem. Os animais podiam ferir de morte algum dos miúdos que se aventurasse a passar por ali e, por descuido ou desconhecimento, fizesse algum movimento brusco, assustando o animal. Mas as crianças sabiam viver, na imensa planície que rodeava as margens do Tejo. Tudo servia para uma boa aventura. Uma cobra de água que passava pela vala e assustava as mondadeiras de arroz submersas em água até à cintura, um tractor que passava carregado de tomate a caminho da fábrica, e o sinal sonoro que indicava o fim da jornada de trabalho na fábrica do descasque do arroz indicava a hora de voltar a casa.
De vez em quando Sérgio percorria os campos na carrinha em busca das crianças e levava-os para mais perto de casa, para, passada meia hora os ver partir de novo, com canas de pesca, em direção ao rio. No verão o rio Tejo era uma atração para a criançada pelo que desistira de as fazer voltar a casa, antes dos trabalhos terminarem pelos campos.
- Olha Marta, lá estão eles - Afonso apontou para as três crianças que se aproximavam.
O mais velho, Tiago, carregava um cesto com comida. Era da idade de Afonso, mas um pouco mais baixo. Tiago Vargas, tinha um riso escarninho que usava com demasiada frequência, o que fazia dele um colega de brincadeira a evitar. Era um rapaz bonito, com porte atlético com pele cor de âmbar e dono de uns olhos verdes, tal como a irmão Maria.
Afonso e Marta não simpatizavam muito com Tiago. Marta era muito miúda ainda e sofria com as diabruras de Tiago que volta e meia lhe puxava os cabelos, ou a atirava para dentro de água vestida, só para ver Afonso socorrê-la, também vestido. «Aquele rapaz tinha o diabo no corpo, já tão novinho», dizia Teresa muitas vezes em frente das crianças, quando os avisava para lhe contarem quando Tiago as maltratasse. Mas o rapaz era demasiado temido entre os seus pares, para algum deles o denunciar. As ações de Tiago Vargas rondavam a doença mental, diziam as pessoas mais esclarecidas da aldeia. O rapaz não era bom da cabeça, como o pai, diziam outros.
- Hoje vamos pescar besugos? – perguntou Afonso. – Com as redes – afirmou.
- Tens um tato para isso! – disse de imediato Tiago.
Maria dá um safanão em Tiago e diz:
- Pára de ser estúpido! Assim nunca vais ter amigos!
- E para que é que os quero! És uma ranhosa! Tu e essa cambada de putos.
- Tiago! Cala-te! Digo à mãe que andas a chamar nomes feios!
- Vai lá e faz isso! Ela não vai acreditar em ti. Não sabes que a mãe só acredita em mim?
Maria virou-lhe as costas. O irmão era irritante.
De súbito os tiros soaram outra vez lá para os lados da casa dos Vargas. Era o que bastava para calar Tiago, e os outros sorriram com cumplicidade. Sabendo que o pai estava a fazer figuras de parvo, Tiago, escondia-se envergonhado e até os tiros cessarem, não aparecia mais.
- Onde vais totó? Não vês que ele não se aventura até aqui? – dizia a irmã, rindo-se dele.
- Deixa-o Maria. A única coisa que detém de ser desagradável é saber que o teu pai anda por aí aos tiros feito doido – disse Afonso.
Afonso e as três garotas ficaram a ver Tiago a esconder-se entre duas valas com medo que o pai aparecesse por ali de caçadeira em punho.
- Vamos brincar para o celeiro logo mais? – disse Marta, desejosa de se estender em cima dos fardos de palha e comer as passas de ameixa que a mãe secara ao sol, e guardara dentro de frascos em conserva.
YOU ARE READING
A Cápsula do Tempo
RomansaDEGUSTAÇÃO Naquela fatidica tarde, Marta Ramires, estava longe de imaginar que iria encontrar o amor da adolescencia, Afonso Simões, às portas da morte, depois de vinte anos de separação por forças maiores que eles. Se Afonso e Marta pensavam que de...