Seoul

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Viver, existir, se encontrar, ser quem você é, perseguir seus sonhos em meio à multidão, todos os dias pensamentos e palavras como essas vem a minha mente, assim que desperto posso observar o teto do quarto decorado com estrelas de plástico que antes costumavam brilhar no escuro, estrelas que eu tanto almejo ver no céu há uma semana, ao que me parece o sonho e a realidade podem se colidir, já que as estrelas pararam de brilhar no escuro, assim como eu que não brilho há exatamente alguns dias, meses, creio que parei de contar no terceiro dia, contar só me lembra do quanto tudo isso é real, o Namjoon de antes adoraria um choque de realidade, mas confesso que o Namjoon de agora detesta isso.

O clima chuvoso, frio e nublado de Seul parece se encaixar quase perfeitamente comigo e com meu humor. Desde que me sinto assim, as chuvas pareceram se intensificar cada vez, posso notar isso quando olho mais uma vez para a rua lá embaixo através das grandes janelas de vidro de meu apartamento, fitando meu reflexo um tanto quanto vazio. Ficar em casa assim talvez me enlouqueça algum dia, minha própria companhia parece fazer mal a mim, tudo parece me fazer mal, inclusive esta cidade, que vim para tentar meus sonhos em prática, mas para que continuar se não existem mais sonhos? 

Tomado pelo desespero e por um ímpeto de coragem, decido vestir um casaco, pegar o guarda chuva e caminhar por algum lugar sem rumo com o intuito de me achar em algum lugar dentro dessa grande metrópole.

A primeira coisa que posso sentir assim que saio do prédio é o clima frio invadir totalmente meu rosto, me fazendo torcer o nariz com o vento gelado. Posso observar alguns rostos conhecidos em meio a algumas pessoas que caminham por ali, nenhum deles parece notar minha presença, alheios às suas próprias percepções se importando somente com o que há em sua frente como cavalos de corrida costumam fazer. Algumas dessas pessoas algum dia já esteve comigo, já riram comigo, já foram boas comigo, eu já tive uma vida boa na grande capital, entretanto algum dia os meus antigos amigos decidiram ir embora, disseram facilmente o famigerado adeus, eu acenei em resposta, mas não consegui sorrir. Aquele dia foi o começo da sequência de dias nublados. 

Coisas como estas definitivamente apertam meu coração e me deixam com saudades de casa. Em Ilsan costumavam ser mais empáticas do que isso, posso perceber enquanto observo algumas pessoas sentadas a beira do Cheonggyecheon, um riacho situado no centro da cidade cujo a história sempre me intrigou. Meus avós costumavam compara-lo a fênix, uma espécie de pássaro que renasce das cinzas, faziam tal analogia, porque anos atrás ele era totalmente impuro, ficava entregue as vielas da cidade, chegaram até mesmo a fazer uma construção em cima do mesmo, o deixando totalmente submerso, no entanto algo inusitado aconteceu, colocaram toda a construção, abaixo para enfim poder expor o tão belo riacho que todos podem apreciar nos dias de hoje. A analogia é um tanto histórica, mas eu adoraria ser como ele algum dia, adoraria ser até mesmo como a fênix, ressurgir das minhas próprias cinzas, me queimar para então me renovar, mas tudo o que queima em mim é o meu peito com a sensação de dúvida e saudades.

Pronunciar Seul é como pronunciar alma, tal fato me remete a lembranças de quando meu corpo por inteiro sabia que tinha uma alma, agora neste exato momento sinto que ela simplesmente achou melhor ir dar uma volta de mim, como algum tipo de descanso, mas como dar uma volta pela grande cidade de Seul sem perder a si mesmo? Eu me perdi quando me tornei parte disso, parte de Seul, tal qual como a minha alma. O instante em que me tornei isso foi sublime e efêmero como uma chuva agradável de verão, não senti chegar, tampouco senti a manifestação de alguma coisa como sentiria em um resfriado, entretanto me senti doente do dia para noite e a minha doença é simplesmente a perda de algo que eu não sei aonde perdi.

As pessoas ao meu redor se movimentam, algumas param para comprar bolinhos de arroz na velha barraca da esquina, outras correm artodoadas pela chuva que resolveu engrossar e alguns decidem observar o riacho da pequena praça ali, mesmo com as gotas grossas de água que agora escorrem por minha face como se Namjoon e Seul chorassem, como se nós dois, eu e Seul, fôssemos um só. Talvez sejamos, visto que eu passei a conhecer a capital como a palma da minha mão, sei que ela dispõe de prédios que possuem o mesmo tipo de arquitetura, pelo menos para mim, com mais andares do que qualquer ser humano possa contar, sei que as pessoas aqui costumam estar atrasadas na maioria das vezes, atrasadas para seus empregos e apressadas demais para viver que acabam perdendo grande parte de suas vidas e de si mesmos.

Imerso em meus pensamentos, acabo mal notando que mesmo com o guarda chuva transparente em mãos me encontro debaixo da chuva, completamente encharcado, mas não é em vão, assim como meus pais costumam acreditar que tudo na vida possui algum sentido, acredito que tal momento melancólico também não é por nada. Talvez precisasse sentir essa chuva, uma particularidade única da cidade que me acolheu, a cidade que não consigo decidir se amo ou odeio, que não consigo definir se fico ou se deixo, são tantas incógnitas e incertezas que qualquer analista ficaria feliz em me atender. Assim decido não usar o guarda chuva e continuar a caminhar pelo centro da cidade, local onde escolhi para morar, abandonando o riacho Cheonggyecheon para ir aonde meus pés e minha mente decidirem me levar.

Os prédios que observo enquanto ando podem praticamente tocar as nuvens nubladas que me impedem de ver a noite estrelada e a lua, como arranha-céus, eles me fazem sentir inveja, queria eu tocar o céu, pondero sobre isso enquanto a chuva aumenta cada vez mais, me tirando de toda e qualquer zona de conforto em que eu estivesse, mesmo que de forma mínima. A chuva é tanta que opto por me abrigar em um dos bancos de um ponto de ônibus vazio, iluminado somente pelo poste de luz disposto na beira da grande avenida, o vazio, que sempre me deu pavor, daquele lugar agora me acolhe como um filho perdido, às vezes é necessário sentir-se tão perdido, na beira do precipício, para se encontrar.

E realmente consigo me encontrar ali, no meio da chuva, sozinho, e iluminado parcialmente pela luz amarela do poste, me encontro de alguma forma graças ao meu caderninho que consigo apanhar no bolso do casaco, ele ainda possui alguns rabiscos, alguns de letras que já compus por inteiro, outros são somente palavras soltas para caso algum dia precise delas, e mais alguns se resumem a pequenos desenhos que venho fazendo de mim mesmo parado na grande metrópole enquanto ela funciona ao meu redor e através de mim. Ainda amo Seul e sou grato a ela por quem me tornei, nunca esqueceria disso, mas agora eu também a odeio, a odeio por ter perdido para ela, como em um ringue de luta fui nocauteado. 

Minhas mãos alcançam a caneta dourada em meu outro bolso, preciso rabiscar algo, todos os meus neurônios e terminações nervosas parecem me cobrar o movimento de escrever neste momento, os respingos de chuva causados pelo vento fazem com que algumas gotas minúsculas de água caíam na folha amarelada do caderninho preto, como se a própria Seul quisesse me acompanhar nessa jornada, assim o primeiro verso sai

“Se amor e ódio são a mesma palavra, eu te amo Seoul
Se amor e ódio são a mesma palavra, eu te odeio Seoul
Se amor e ódio são a mesma palavra, eu te amo Seoul
Se amor e ódio são a mesma palavra, eu te odeio Seoul.”

Escrito por: pjmcoeur
Revisado por: LuaInAHoodie
Capa e Arte por: LuaInAHoodie e pjmcoeur

Mono: Monster No MoreOnde histórias criam vida. Descubra agora