Solução [1]

44 2 0
                                    


— Ei, se afaste um pouco desse computador.
Antes que pudesse virar a cabeça para olhar, o som de um pacote de biscoitos sendo esmagados quebrou o silêncio do quarto e logo após um travesseiro foi atirado em suas costas.

— Está tentando me matar? Não vê que estou trabalhando? — reclamou, atirando de volta o travesseiro que caiu no chão.
— Te matar? — o outro riu. — Você vai se matar sozinho e olha só — um dedo de acusação foi apontado na direção de Kasumi que arqueou uma das sobrancelhas. — você deveria arrumar o lixo desse quarto, tudo aqui está uma bagunça-
— Já acabou? — interrompeu Takahiro em meio ao seu fervoroso discurso e voltou sua atenção mais uma vez a tela do computador a sua frente.

— Você... Você... Kasumi, será que você nunca me ouve?! — Takahiro quase berrou de raiva, suas articulações da mão ficavam brancas pela força exercida enquanto fechava as mesmas em punhos.
— Sabe, eu ouço com ouvido e não com os olhos. — Kasumi retrucou, coçando a cabeça e bocejou preguiçosamente. Seus olhos começavam a arder por causa de horas em frente ao computador e ele tinha certeza de que sua coluna nunca mais seria a mesma também.

Takahiro ficou em silêncio por um longo período, apenas ouvindo os sons do teclado e mouse que eram pressionados incessantemente. Contou até 10, mas aquilo nunca funcionava com ele; não havia como não ficar irritado com Kasumi.
— Ainda está aí? — Kasumi olhou por cima do ombro. — Pode ir para casa, eu vou demorar.
— E vai ficar comendo biscoitos e bebendo energético até quando?
— Até eu terminar esse jogo e assinar meu contrato milionário.

Um sorriso meio amargo apareceu nos lábios de Takahiro e ele teve vontade de segurar Kasumi pelo colarinho e sacudir, mas conteve-se.
— Contrato milionário? Não vai se animando porque você não vai ganhar milhões com seu primeiro jogo.
— O que está dizendo? — Kasumi murmurou as palavras mecanicamente, dedilhando o teclado com diligência.
— Você é um Zé Ninguém. Acha mesmo que aquela empresa te pagaria milhões por um jogo que eles nem sabem se vai vender milhões?

Kasumi girou na cadeira e encarou Takahiro no escuro do quarto por breves segundos antes de abrir a boca para falar.
— Ao menos eu estou tentando ficar rico, diferente de um certo alguém que fica o dia inteiro sentado em uma cadeira de escritório sem a mínima possibilidade de mudança! — esbravejou.
— Ah, é? — Takahiro ajeitou seus óculos com o indicador. — Quem é que vive me pedindo dinheiro emprestado e nunca paga?
— Ah, não desvie do assunto!
— Eu fazendo desvios? Por algum acaso, sua vida financeira que está um desastre não é por que não arruma um emprego decente e só fica o dia inteiro no computador?

Kasumi sentiu um leve aperto no peito, então ele girou na cadeira e voltou a encarar o computador.
— Eu estou trabalhando, estou desenvolvendo jogos. — disse.
— Você já fez outros antes e qual foi o que te deu dinheiro o suficiente para pagar suas dívidas?
— Não é como se eu fosse tão endividado assim, Takahiro. E eu juro, esse é a minha obra prima... Mas — ele pôs as mãos na cabeça e puxou os cabelos. — não consigo colocar um final bom o suficiente!

Takahiro se aproximou um pouco e deu uma espiada na tela do computador, ele realmente não entendia muita coisa de alta tecnologia ou jogos, então não podia dar muita opinião.
— E quanto tempo você ainda tem? — perguntou.
— Um mês e meio. — respondeu.
— Acho que você deveria comer uma comida decente, limpar esse quarto, dormir e depois voltar a essa perda de- — antes que terminasse a frase, ele fingiu uma tosse. — depois voltar ao trabalho.

Dizer que era uma perda de tempo machucaria os sentimentos de Kasumi e isso era a última coisa que Takahiro queria fazer. As vezes ele era um pouco duro, mas era pelo seu bem. Kasumi parecia uma criança mimada embora já fosse um adulto. Sem nenhuma responsabilidade, ele só fazia o que queria e quando queria, mas se fosse algo que lhe agradasse, colocava todo seu sangue, suor e lágrimas na tarefa, e se não fosse...

— Não tenho tempo para isso agora, eu preciso decidir se o vilão vai mesmo morrer.
Takahiro bateu com o pé duas vezes no chão e pôs a mão no ombro de seu amigo.
— Se você não levantar daí agora para tomar banho e comer, eu  vou me tonar um vilão e te matar! — disse.
— Sabia que você tinha talento para o mal. — Kasumi se levantou da cadeira com um enorme sorriso e encarou Takahiro por alguns instantes.
— O que você está dizendo? — arqueou uma sobrancelha e Kasumi tratou de fugir o mais rápido possível, correndo com uma risada que soava como a de uma criança.

Takahiro suspirou e acendeu a luz do quarto. É, estava muito pior do que ele imaginou, roupas e pacotes de biscoito espalhados por todo lugar, as cobertas da cama também estavam no chão de alguma forma e algumas tigelas de sopa eram escondidas embaixo da mesma.
Ele massageou as têmporas. Só podia ser brincadeira.

Enquanto a água quente caia em seus ombros, Kasumi apenas pôde ficar imóvel enquanto sentia seus músculos enrijecidos relaxarem um pouco. Ele estava pressionado, estressado e falido. Suas últimas economias foram gastas no computador de última geração que precisava para desenvolver os jogos. Seu antigo foi vendido por um preço razoável e Kasumi usou o dinheiro para comprar softwares para o desenvolvimento.

Toda sua energia, autoestima e dinheiro estavam investidos ali. Kasumi não podia falhar dessa vez. Nem que seja a última coisa que eu faça na vida... com um leve suspiro, ele balançou a cabeça, espantando os pensamentos dramáticos.
Seus cabelos molhados caiam nos olhos, tampado sua visão como se ele visse por trás de uma cortina molhada.

Ele segurou a ponta encharcada do cabelo e tirou dos olhos. Qual tinha sido a última vez que os cortou?
Kasumi nunca ligou muito para sua aparência, ele simplesmente pegava a primeira roupa que via no armário e vestia. Durante a faculdade e o colegial, ele nunca foi popular e sempre viveu a sombra de Takahiro, sendo conhecido como "a sombra".

Era até um tanto engraçado.
Ele não tinha sido agraciado com a sorte de Takahiro de ter belos cabelos e belas feições que pareciam esculpidas em marfim. Mas assim como o marfim, Takahiro era um tanto frio demais e as garotas não tinham coragem o suficiente para chamá-lo para sair. De que adiantava então toda aquela beleza se ele não colocava para um bom uso?

Kasumi riu, achando ridículo seus próprios pensamentos e terminou de tirar o shampoo dos cabelos.
Se não fosse por suas famílias terem um relacionamento próximo, Kasumi duvidava que seria amigo de Takahiro. As pessoas geralmente comentavam sobre a diferença entre eles. Ele riu baixinho mais uma vez e fechou o chuveiro. Sempre fora do tipo que espantava seus problemas e preocupações com uma risada.

Takahiro terminou de levar o lixo para fora e arrumou a mesa. Comida de loja de conveniência não era a melhor coisa, mas ainda seria uma escolha melhor que biscoitos e energético.
Quando Kasumi saiu do banho, seus cabelos pingavam em sua camiseta azul e estavam tão bagunçados que parecia um ninho.

— O que é isso? — ele perguntou.
— Comida. — Takahiro respondeu o óbvio e virou-se de costas para ir a cozinha.
— Não... Estou falando sobre essa arrumação.
— Ah, esse lixo todo me incomodou. — Takahiro ajeitou seus óculos e caminhou para o seu destino.

Kasumi foi até seu quarto e abriu a porta com um baque. Seus olhos encontraram o local limpo, a cama estava arrumada com lençóis limpos e a roupa suja não estava mais espalhada pelo chão. Ele se aproximou da cama e abaixou, olhando embaixo dela e não encontrou as tijelas sujas que estavam ali.

Ele cobriu o rosto com a palma, envergonhado por Takahiro ter limpado seu quarto. Sabe lá o que mais ele tinha encontrado ali em meio a bagunça.
Todos os seus cadernos de referência estavam arrumados em uma pilha em cima da escrivaninha e os livros que usou para pesquisa estavam organizados em ordem alfabética na estante. Por que Takahiro ainda não tinha uma namorada?

Ele pisou silenciosamente na cozinha e encontrou seu amigo descascando maçãs na pia.
— Ei, Takahiro... Obrigado. — murmurou, esfregando a toalha freneticamente em seus fios molhados.
— Me agradeça cuidando melhor de si mesmo. — ele disse.
— Ah, não posso prometer. — Kasumi olhou para os pés com um leve sorriso.
— Que pena então, você nunca vai saber se ficou milionário. — Takahiro tirou a casca vermelha da fruta e cortou em fatias finas.

— O que você quer dizer com isso? — Kasumi sentiu sua voz falhar levemente, Takahiro podia ser assustador as vezes.
— Fantasmas não gastam dinheiro desse mundo. — respondeu, entregando-lhe um pequeno prato com maçãs cortadas em formato de coelho.
— Takahiro, não seja tão cruel assim! — Kasumi correu atrás dele até a sala.

Os dois já tinham acabado de jantar e Takahiro observava o rosto do outro mudar de cor a cada gole de cerveja que ele bebia. Já estava na quarta lata e a cada minuto as palavras dele faziam menos sentido. Encheu um copo d'água e pôs na frente de Kasumi, tirando a lata de cerveja de perto dele e puxou para si.
— Pare de beber.
— Eu sou maior de idade, sabia? — retrucou, sua expressão era uma carranca de extremo desagrado.
— Então eu vou embora e não vou ajudar nem um pouco com o final do jogo. — Takahiro falou, forçando Kasumi a fazer uma escolha.

Aos poucos suas feições voltaram ao normal e ele desistiu da lata de cerveja, bebendo um grande gole de água. Uma das tarefas de Takahiro era tirar o álcool de Kasumi antes que ele ficasse muito bêbado, já que era impossível lidar com ele nessa situação.

— Então, o que falta? — perguntou, segurando uma caneta e uma agenda sem pauta que usava para trabalhar e levava para todo lugar.
— Um final satisfatório... — Kasumi se levantou. — Daquele tipo que você fica boquiaberto. — fez sinal de explosões com as mãos e Takahiro anotou algumas palavras.

— Eu queria que fosse alguma coisa que realmente valesse a pena, — andou de um lado para o outro. — um final que talvez valesse uma sequência.
Takahiro fez mais algumas anotações, ser secretário do presidente de uma empresa de marketing havia lhe ensinado a lidar com pedidos um tanto inusitados e a resolvê-los da melhor forma.
— Já pensou em algo que ninguém está esperando? — Takahiro perguntou, pensativo e sem desgrudar os olhos de suas anotações.

— Ahãm, se fosse tão simples alguém já teria pensado. — frustrado, Kasumi pegou rapidamente a lata de cerveja de perto do amigo e bebeu mais um gole.
— Não estou dizendo para fazer algo inédito, e sim para fazer o inesperado.
— Hmm... — apoiou o dedo no queixo e caminhou sem direção mais uma vez. — Tipo um final muito sem sentido?
— Não Kasumi, se for completamente sem sentido, as pessoas vão ficar com raiva de você. — respondeu.
— Acho que estou entendendo! — sorriu animado.

— Eu pensei em uma coisa. — Takahiro fez uns rabiscos no papel e levantou os óculos antes de olhar para Kasumi que o fitava com expectativa. — E se tudo não passasse de memórias da vida passada do protagonista?
Takahiro apoiou a caneta em seu lábio inferior e fez mais uns rabiscos.

Kasumi não pôde conter sua animação e se curvou, segurando Takahiro pelos ombros e sua empolgação o fez esquecer de se conter, seu peso foi projetado em Takahiro e o fez cair.
A agenda estava jogada no chão junto com a caneta, Kasumi ainda segurava seus ombros e Takahiro piscava, atônito.
— Essa ideia é maravilhosa, mas eu precisava mudar alguns eventos para chegar a esse fim... — Kasumi pareceu desanimado.

Takahiro o fitou em silêncio, seu coração batia acelerado e Kasumi continuava o segurando no chão. Aos poucos o rosto do outro foi relaxando, até que ele sorriu de uma forma um tanto curiosa.
— Se eu pudesse entrar no jogo, tudo seria mais fácil. — ele murmurou antes de cair em cima de Takahiro.

Alguns segundos se passaram até que registrou o que havia acontecido. Kasumi teve um colapso, por causa da bebida ou cansaço.
Por que coisas assim aconteciam com Takahiro?

一日三秋 || One day, three autumns {pt-br}Onde histórias criam vida. Descubra agora