O inverno da ira

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É fato que amantes podem tornar-se descuidados, porque amor é droga que inebria, que pode roubar a razão, que pode embotar os sentidos. Mas é fato também que amantes podem fortalecer um ao outro e o amor pode ser oásis num deserto, calmaria em meio à tormenta, farol na escuridão.

Desde o primeiro dia em que haviam se amado, eles tentavam conter o desejo, mas, eventualmente, ela pedia que ele trancasse a porta e, em segredo e silêncio, amavam-se. Ele nunca havia amado. Ela nunca havia sido realmente amada por um homem. Mas agora, o amor era tudo que tinham.

Bardock tinha um plano. Mas não era apenas o amor que o movia, mas também o ódio aos captores de Gine. No fim do outono, ele a percebeu com febre. Era de se esperar que, no clima gelado das montanhas, vestida apenas com uma camisola de hospital e imóvel numa cama enquanto seus pulmões acumulavam fluidos, Gine acabaria doente.

Ele reportou a febre para o Doutor Paragas. Reportou a febre para o Doutor Yamoshi, esperou ver entre as suas prescrições, antibióticos e anti-inflamatórios. Mas tudo que havia na receita era o maldito Rophinol, em doses cada vez mais cavalares.

Ele não aplicava o hipnótico nela, prometera que nunca mais faria aquilo, e ela fingia bem que permanecia dopada... então, o aumento da dose só podia significar uma coisa: queriam acelerar o processo, queriam matar sua Gine, sua amada.

E ele não permitira que o amor dos dois se perdesse... Nenhum médico canalha iria tirar dele a mulher de sua vida.

Se eles não prescreviam, ele cuidaria dela por conta própria. Ela disse os remédios que precisava, e eles estavam todos na farmácia da instituição. Jogando charme para a jovem que cuidava das doses, ele se disse doente, dando a entender que tinha "certos problemas" que um homem não gostaria de confiar a um médico e, fazendo-a acreditar que queria curar-se de algum mal venéreo com aqueles remédios para então, quem sabe, encontrar-se com uma mulher mais virtuosa.

Com alguma conversa, Bardock conseguiu as injeções, e, com elas, curou sua Gine. A garota da farmácia provavelmente ficaria desapontada, mas não era o primeiro e nem seria o último rapaz que a enganava com falsas promessas.

Por outro lado, o ódio de Bardock àquele lugar só fez aumentar, à medida que Gine convalescia, com dificuldades, seu corpo visivelmente mais magro pelo déficit calórico da sopa rala, a única alimentação que recebia.

Ele, então, passou a contrabandear pães, frutas, tudo para curá-la antes dos dias mais rigorosos do inverno. Deus sabia o quanto ele rezava para dias de nevasca, que tornariam possível o seu, ainda assim arriscado, plano.

Uma barra de sabão e duas chaves. Pressionou-as contra o sabão macio e obteve moldes. E, com um pouco de chumbo de um cano que ele encontrou perdido e um maçarico da oficina, ele passou a ter livre trânsito pela ala médica e para o quarto de Gine, para onde ele se esgueirava no meio da madrugada.

Soltava-lhe as amarras, ajudava-a a andar, andar pelo quarto para manter-se forte, para manter os movimentos e a tonicidade muscular. Então, sem resistir, ele se amavam, em silêncio e cumplicidade.

- Se insistirmos assim – ela disse uma noite, os lábios colados aos dele, lânguida e satisfeita depois de mais um devastador orgasmo – vou acabar engravidando.

- Seria um presente – ele disse, e mordeu-lhe os lábios carnudos – o amor, a liberdade e um filho teu...

- Cuidado, amor de minha vida – quando anda por esses corredores sombrios no meio da madrugada – ela sussurrou, prendendo-o naquele abraço – eu não me conformaria se te tirassem de mim. Preferia morrer...

Ele a encarou, e seus olhos eram brilhantes como brasas, ainda que paradoxalmente escuros:

- Antes de morrer, Gine, eu mataria cada um que te fez sofrer...

Ira do DesejoOnde histórias criam vida. Descubra agora