Vinte e Nove: Fuga

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Após deixar a igreja bufando de raiva como um touro, fui direto ao ponto mais próximo e, sem pensar duas vezes, entrei com Mabel no primeiro ônibus circular que pudesse me deixar no centro da cidade.

Minha ira e a sensação de ter sido traída injustamente era gigantesca. O peito chegava a arder de tanta fúria acumulada, querendo ser extravasada. Eu simplesmente não conseguia aceitar fato de pessoas se metendo nas minhas decisões, sendo com boas intenções ou não.

O que Victor e Coelho estavam pensando quando tiveram a brilhante ideia de me pegarem de surpresa, levando meu pai até mim? Aquilo era inaceitável! Cansei de repetir que não me sentia segura com a ideia de revê-lo e levaria pelo menos alguns meses até conseguir mudar meus conceitos. Mas, mesmo diante de fatos tão concretos, eles traíram minha confiança e amizade e eu não podia compactuar com aquilo.

"Eles não compreendem a minha dor" pensei tomada de mágoa, pois em meus conceitos eu era a única prejudicada em tudo. Fui eu quem precisei ir embora quando a vida da minha bebê foi ameaçada, eu precisei trabalhar até os nove meses de gravidez, sentir horas de contrações intermináveis, dar a luz e voltar para casa para enfrentar um puerpério difícil, tendo a ajuda de ninguém além de uma agente comunitária que me visitava uma vez por semana, de resto eu permanecia sozinha. Tudo isso enquanto todos os outros viviam suas boas vidas perfeitas como se eu nunca tivesse existido. Esse era o meu lado. A parte obscura de uma história que ninguém se esforçava para compreender.

Continuei remoendo, com rancor, os últimos ocorridos até lembrar da mensagem de Davi e questionar por alguns míseros segundos que talvez eu estivesse equivocada e cega de egoísmo.

Minha família nunca ficou sabendo que engravidei e também desconheciam meu paradeiro. Quando fugi pela primeira vez e encontrei um lugar para ficar, bolei um plano e consegui enviar uma carta a eles, garantindo minha total segurança e estabilidade. Escrevi palavras duras e deixei claro que não queria ninguém me procurando, do contrário eu não pensaria duas vezes em encontrar qualquer outro lugar longe da presença deles. Além disso tudo, troquei meu número e em qualquer lugar, quando me perguntavam o motivo da mudança, eu alegava estar em busca de uma nova vida, sem dar qualquer detalhe quanto a minha falta de contato com parentes e amigos. Meu objetivo, na verdade, sempre foi poupar a todos da vergonha ocasionada por minha rebeldia ao me envolver tão intimamente com um homem que não era meu marido, mas acabei trazendo um sofrimento ainda maior para aqueles que sempre se mostraram leais a mim.

"Papai teria te acolhido grávida ou não, Sarah. Ele adoraria ter uma neta! Você teria um lugar em casa. Pense em como fomos ensinado sobre histórias como as de José que perdoou seus irmãos após ser vendido como escravo, o filho pródigo quando obteve perdão após roubar de seu pai e o próprio Jesus Cristo rogando que o perdão do Pai fosse derramado sobre os inimigos enquanto ainda os açoitavam?" disse Davi na mensagem.

O nó em minha garganta começou a apertar e uma leve pontada fisgou o coração.

Tudo poderia ter sido completamente diferente se eu tivesse aberto mão da covardia e confessasse meus erros ao meu pai, pedindo misericórdia por tê-lo desrespeitado grandemente. Eu duvidei do amor daquele que cuidou de mim desde sempre e preferi acreditar estar sem opções, pois só assim eu não precisaria encarar a realidade gritante, mostrando quão maldosa eu fui.

Mas, infelizmente, cheguei a essa conclusão tarde demais e o fato de estar cometendo exatamente as mesmas atitudes do passado, me deixavam ainda mais temerosa.

Segui viagem usando aquele transporte público e quando estávamos prestes a chegar ao ponto final, minha ira foi se aplacando, dando lugar a uma profunda tristeza. Senti as lágrimas involuntárias escorrendo por minhas bochechas e olhei para Mabel dormindo profundamente em meu colo, completamente alheia às loucuras da mãe.

Ensina-me amarOnde histórias criam vida. Descubra agora