Capítulo II

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O silêncio invade um campo vago. Os pássaros cantam normalmente, demonstrando gratidão na arte de viver. O silêncio é quebrado por uma criaturinha, que pula em direção à árvore onde estavam, assustando-os. Bumi, uma criança com traços de um bode, era habitante das terras de Kan'nian desde que se conhece como... criatura. Ele era morador de uma pequena fazenda daquelas terras que pertencia ao ex-marinheiro de quatro braços, Rosivaldo. Os dois se davam bem, exceto quando Bumi aprontava em fazendas alheias ou em pequenas comunidades, afinal, ele era meio bode.
Bumi consegue capturar um passarinho e logo sai correndo em direção ao celeiro onde Rosivaldo trabalhava.
— Rosi! Rosi! Eu capturei um passarinho!
— QUÊ?
— O passarinho, Rosi!
— ...O QUÊ?
Bumi acaba batendo os chifres num galho de árvore e cai, libertando o passarinho de suas mãos.
— AINDA NÃO ENTENDI O QUÊ VOCÊ DISSE!
— Deixa pra lá, Rosi...
A criatura se levanta, tirando a terra de seu macacão, e continua seu trajeto andando. Rosivaldo estava montando alguns blocos de feno para guardar em um outro armazém. Sua condição tornava um trabalho feito por duas pessoas em 3 horas num trabalho feito por uma pessoa em 30 minutos. Bumi não gostava muito de ser ignorado por ele, então sempre que Rosivaldo estava ocupado com algo, fazia de tudo para chamar sua atenção.
— Rosi... Eu tinha pego um passarinho, sabe?
— Ah! Então era isso que você tava gritando lá de longe?
— É sim, mas se não fossem pelos meus chifres idiotas eu teria prendido ele pra você...
Rosivaldo parou de trabalhar por um momento.
— Bumi... Os passarinhos são como a gente, não pode prender.
— Mas e se fosse pra prender pra outra pessoa?
— Mesmo assim. Não ia querer que te prendessem em nome dos donos de todas as fazendas que você causou intriga, né?
— Eu ia parar de perturbar as pessoas! Isso seria perfeito! Mas... eu não ia poder brincar mais...
— Exatamente, meu pequeno. Então o que você acabou de aprender?
—  ...Ah, eu não sei.
Rosivaldo apenas suspirou e deu um soquinho fraco no rosto da criatura. Ele ainda era muito imaturo...
Bumi resolveu sair do celeiro para brincar com os outros pássaros. Enquanto se preparava para assustá-los, como um leão prestes a atacar uma zebra, ouviu um grito. Passos de alguém correndo, ofegante. Levantou-se no meio do campo e olhou em volta, procurando qualquer evidência do que fosse esse grito quando alguém bateu nele e Bumi rolou colina abaixo.
— ...Ai! Desculpa, moço, eu não estava prestando atenção...
Bumi bate os chifres num tronco de árvore.
— Mas hein? Você quase perfurou minha cabeça!
—  Ah, é uma criança... — disse, dando um tapinha em sua testa.
A desconhecida desceu a colina até chegar perto da criatura. Bumi tentou focar sua visão para ver quem tinha quase perfurado sua cabeça. Era uma menina de olhos grandes e orelhas pontudas.
— Oi! Meu nome é Luana, e o seu?
— Bumi. Que tipo de anomalia você tem?
— Anomalia?... Mas eu não tenho nenhuma!
— Mas essas criaturas não existem! Você deve ter uma anomalia que ainda não conhece.
Luana suspirou, se segurando para não falar sobre as múltiplas anomalias que Bumi tinha.
— O que é aquela mancha no seu braço?
— Isso? Acho que é uma marca de nascença — respondeu Luana.
— Viu? Você tem uma anomalia.
— Não é anomalia!
—  É sim...
—  Né não!
Bumi permanece um tempo em silêncio.
—  Ah! Tanto faz, então! Me ajuda aqui, criatura sem anomalia.
Luana ajudou Bumi a se levantar. Quando se preparavam para voltar para a árvore de antes, alguns seres de capuz escuro começaram a aparecer perto de onde os dois estavam.
— ...Eu sei que a gente se conheceu agora, mas pelo que eu vi você corre muito.
— Quê?... Por que você tá falando isso?
— Porque é melhor a gente sair daqui antes que esses magos nos vejam... Se um deles gritar, sai correndo.
Ambos saíram andando de fininho, tentando contornar a colina sem serem vistos. Enquanto a tensão reinava sobre aquela situação, Bumi acabou batendo seus chifres em outro galho, mas dessa vez, brutalmente.
— AAAAAAI!!
Luana deu um grito e saiu correndo em disparada.
— NÃO, ESPERA! FUI EU QUE GRITEI, FOI SEM QUERER!
Bumi saiu correndo atrás de Luana. Os magos que ali estavam começaram a perseguir os dois, que corriam desesperadamente em direção ao celeiro.
— BUMI! O QUE A GENTE FAZ AGORA???
— CORRE ATÉ AQUELE CELEIRO!
Um dos magos que estavam perseguindo as crianças fez sinal para os outros depois de perceber os chifres longos de Bumi, dando a entender que eles pegariam o mesmo.
— ROSI! ROSI ABRE A PORTA!
— O QUÊ?...
— ABRE A PORTA, FILHO DA DESGRAÇA!
— ...O QUÊ?
— ABRE A DESGRAÇA DO CELEIRO, SEU BESOURO HUMANO!!
Rosivaldo abriu as portas do celeiro. As duas crianças entraram em disparada, caindo sobre alguns blocos de feno. Logo após, Rosivaldo fechou as portas sem entender absolutamente nada.
— Quem é essa outra criaturinha aí?- perguntou Rosivaldo.
— Peraí Rosi... — Bumi estava ofegante — ...Essa é a Luana, ela trombou em mim lá no campo e os magos apareceram... Por isso a gente saiu correndo.
— Ah, tudo bem, mas eu já te disse pra não ficar nos campos dali sozinho! Você sabe que aqueles magos são malvados...
— O que eram aqueles magos? — perguntou Luana.
— Ah, muito prazer! Sou o dono dessa fazenda e o guardião do Bumi, meu nome é Rosivaldo. Que tipo de anomalia você tem?
— Bumi me perguntou a mesma coisa. Eu não tenho nenhuma, mas segundo ele, a minha marca de nascença é uma anomalia — disse Luana, mostrando sua marca.
— Entendo. Bem, respondo a sua pergunta depois. Vocês estão com fome?
— Eu tô é com raiva desses chifres...— indagou Bumi.
Luana ainda se sentia culpada por ter fugido de casa, mas mesmo assim, não pensava em voltar para Dankai Lee tão cedo. Rosivaldo havia preparado alguma coisa para eles comerem. Uma massa aquecida no forno, que parecia um pão, e quando mordido, um doce estranhamente delicioso. Enquanto a menina aproveitava o lanche que não sabia se receberia de outra forma ou em outro momento, todos na mesa conversavam.
— Então, você vem de onde, Luana? — perguntou Bumi.
— Eu vim de uma ilha chamada Dankai Lee. É legal viver lá.
— Ué, e tu tá fazendo o que aqui? — perguntou Rosivaldo.
— Bem, descobri que tem alguma coisa sendo escondida de mim. Todos escondem algo que dizem ser terrível, algo que aconteceu no passado.
— Ah, passado é passado. Já foi, por quê as pessoas ainda falam sobre isso?
— Mas esse é o problema. Ninguém fala nada comigo...
— Você tinha família lá? — perguntou Bumi.
— Tinha sim. Meus pais... Cris e Samar...
— Samar? De Samarco?... — perguntou Rosivaldo após ter se engasgado com uma bebida alcoólica.
— Você conhece ele?
— Ah... Sim, sim. Um velho amigo meu... — disfarçou Rosivaldo, com uma risada falsa.
— Olha, eu fugi pra poder descobrir o que aconteceu e por que as pessoas escondiam tudo de mim. Agora ninguém mais vai mentir na minha cara.
— Sim, claro...
Rosivaldo desconfiado de tudo, como quase sempre.
Bumi arrumou um espaço para Luana passar a noite por lá, no celeiro, todo pimposo e feliz por ter feito uma nova amiga. O mutante de quatro braços não questionou ou impediu que seu menino o fizesse, assim, teria a chance de vasculhar as coisas da menina para descobrir se ela seria confiável ou não.
Abriu a porta lentamente, tentando não fazer nenhum barulho. Era incrível como se sentia um acrobata numa corda bamba, podendo cair a qualquer momento. Pegou a mochila e procurou por qualquer coisa suspeita. Rosivaldo acabou encontrando o livro do símbolo estranho e um suspiro profundo o tomou. Colocou a mochila no mesmo lugar, saindo de lá silenciosamente.
No outro dia, Bumi apareceu no celeiro, acordando Luana.
— Acorda! Acorda! Vamos brincar no rio!
— Ai, menino... Eu acabei de acordar...
— Então corre aí! Vamo perder tempo não! Nós vamos brincar, correr, espantar passarinhos...
Luana ainda se encontrava sonolenta, tentando bloquear os raios solares que atingiam seu rosto.
— Anda logo!
Luana levantou-se, sentindo que estava mais cansada de que quando foi dormir. Ao chegar na cozinha da casa na fazenda, Rosivaldo começou a gritar.
— Sai da minha fazenda, bruxa!
— Desculpa? Bruxa?
— Vocês pensam que podem simplesmente mandar uma espiã pra tirar o Bumi de mim!
— É o quê??...
Rosivaldo olhou para as paredes e o teto, desconfiado e enraivecido.
— Vocês não me enganam, Raknor, vocês ainda vão cair!
Bumi entrou em disparada no mesmo lugar, perguntando o que estava acontecendo.
— Eu achei o livro dessa desgraçada! O símbolo do Raknor estava nele! Ela é uma bruxa infiltrada!
— Raknor?... — disse Luana.
— Ô bosta... Anda, admite!
Bumi deu um tapinha em um dos braços de Rosivaldo.
— Calma aí, Rosi. Relaxa esses punhos aí, seu mané.
Luana se assustou, apresentando um semblante tenso.
— Luana, é verdade isso?
— Esse livro não é meu! Ele estava na minha ilha, eu peguei porque eu achei que tinha alguma coisa a ver com toda essa coisa terrível!...
— E por que devo acreditar em você? — perguntou o homem.
A garota tirou a luva que cobria sua mão queimada, mostrando o que o fogo é capaz de fazer com a pele.
— Minha mãe disse que eu me queimei enquanto ela cozinhava, mas eu conheço ela. É tudo mentira...
Rosivaldo sentou-se em uma cadeira, parecendo confuso.
— Eu quero saber por que eu tenho isso, por quê eu quase perdi a mão. Quem é esse tal de Raknor, o que ele faz e o que isso tudo tem a ver com o meu pai.
— Seu pai é um mago — disse Rosivaldo, seco.
— HÃ?...
— Seu pai foi filiado à organização Raknor, ou seja, ele foi um tirano sem vergonha.
— Meu pai?...
— Ele já se encontrou comigo uma vez, mas não de uma forma amigável.
Luana desviou o olhar, incrédula, voltando a encarar Rosivaldo.
— Então não conheço meu pai, mas eu não sou uma bruxa dessa coisa! Eu sou uma pessoa boa!— a menina sentia um nó em sua garganta.
— Isso nós vamos descobrir...
— ...Rosi, vou brincar com a Luana, tá? – disse Bumi, tentando cortar o clima tenso.
— Tomem cuidado... — Rosivaldo agachou-se perto do menino, cochichando — ...principalmente você, com essa aí.
Bumi assentiu, confiante de que tudo ficaria bem e de que a menina não faria mal algum. Levou Luana para um rio que ficava além da floresta ao lado da fazenda para poder esquecer o mundo e seus problemas, sendo apenas duas crianças. Tudo estava começando a desmoronar, tanto para Luana quanto para o Bumi. Mistérios atrás de mistérios, erros atrás de mentiras e decisões atrás de falsas faces.

Ramwari - Uma História de Heróis e VilõesOnde histórias criam vida. Descubra agora