Capítulo 2

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   Seis meses já haviam se passado desde que mamãe se fora, e três meses desde que nos mudamos. Mas as sensações continuavam as mesmas, com exceção do cansaço, que simplesmente se multiplicara cada dia mais.
   – Estou farta de toda esta merda, Júlia – minha irmã resmungou enquanto fungava.
   Eu queria poder dar a ela palavras de conforto, mas a verdade é que eu também estava farta. Continuava seguindo firme única e exclusivamente por ela. Porque, se tivesse acontecido o contrário e fosse eu quem não estivesse aqui, a minha mãe com certeza continuaria protegendo Lin a todo custo.
   – Tudo ficará bem, querida – acabei garantindo apesar das circunstâncias nada favoráveis.
  – Nós estamos arruinadas! E eu nem sequer posso frequentar a escola porque estou com o pagamento atrasado há meses – disparou a minha irmã mais nova – eu fui alvo de piada por isso, Júlia. Foi humilhante.
  Tudo aquilo estava me matando cada vez mais. Porque, como se não bastasse perder a minha mãe, precisava ouvir Linne falar sobre tudo de ruim que estava passando e, diante disso me fingir de forte.
   – Eu sei, Lin, adolescentes sabem ser terríveis de vez em quando – sequei suas lágrimas que desciam desenfreadamente – mas pense que talvez você só esteja sendo mimada, existem dezenas de escolas na cidade que são de graça.
   – Você está falando sério? – questionou ainda esperançosa de que eu dissesse que não, mas infelizmente dessa vez eu não poderia – eu me nego a frequentar um lugar desses – e então ela empinou o nariz.
   Nós estávamos passando por tanta coisa, mas aparentemente a maior preocupação de Linne era se ela iria ou não para uma escola pública. Patético!
   – Você disse que seria mais compreensiva, lembra?
   Não queria fazê-la se sentir culpada, mas ela obviamente precisava de um pouco mais de consciência.
  – É... eu disse, né? – deitou a cabeça em meu colo, um sinal de que estava sendo complacente. Isso não acontecia todo dia – tudo bem, Júlia. Talvez eu possa estudar numa dessas escolas para gente pobre.
  – A nossa situação não é nada, nada boa. Então ajudaria muito se você não fosse uma esnobe na maior parte do tempo!
   Então Lin levantou rapidamente, me encarando com um olhar repleto de raiva.
   – Óh, ser humano perfeito! Eu sinto muito se não sou tão caridosa e defensora da classe baixa quanto você – resmungou com sarcasmo – acontece que eu tô na merda, Júlia! Afundando cada vez mais, e a minha menor preocupação no momento é se estou ofendendo alguém.
   – Bom, você deveria, porque se você ofender quem quer que seja só pela falta de dinheiro, estará ofendendo a si mesma indiretamente. Nós não temos nada, Linne! Você precisa entender isso. E eu sei que nós não estamos acostumadas com essa realidade, mas é importante que saiba que as coisas vão piorar ainda mais quando a tia Núbia resolver nos despejar.
   Eu não queria assustá-la, mas o que ela precisava naquele momento era de um bom choque de realidade.
     – Não, ela não faria isso! – afirmou, mas logo voltou atrás ao lembrar que ser canalha está no sangue da nossa tia – acha que ela faria? – Linne perguntou, e dava pra perceber o medo que ela sentia só pela sua voz.
   – Ela disse que se a gente não pagar o aluguel no final do mês, vai ser obrigada a nos mandar embora. Também disse que nós não podemos ser inquilinas se ela não receber pela casa.
   – Somos as sobrinhas dela, como ela pode ser tão insensível? Só fazem seis meses desde a morte da nossa mãe, e três meses que o irmão dela nos roubou! – Lin nunca o chamara de pai, cortou relações com ele desde que descobriu que ele abandonou nossa mãe a própria sorte com duas crianças para sustentar.
   Mas sim, nós tivemos sorte por nossa mãe ter recebido uma herança do nosso avô paterno, herança que deveria ser do meu "pai" (gosto de colocar aspas por ele nunca ter agido como um).
   O meu avô descobriu pouco antes de morrer que tinha duas netas, uma de quatro anos e outra que estava perto de nascer. Não demorou muito para alterar todo o testamento e passar tudo o que era de seu filho para a ex-namorada dele, vulgo minha mãe.
   Eu nem preciso falar o quanto isso tornou o meu "pai" uma pessoa ainda mais amargurada do que ele já era. Minha vida até parece uma novela pelo fato dele ter planejado por quinze anos uma forma de roubar o dinheiro que meu avô nos deixou – o bastante para nos sustentar e também a todos os caprichos que tivéssemos – mas eu não deveria esquecer nunca de que pessoas terrivelmente cruéis existem dentro e fora das incríveis telas de uma televisão. Isso teria evitado muitas decepções.
   – Ah, Linne... – comecei – você sabe como a nossa tia é.
   – Interesseira?
   – Isso também. Se nós ainda tivéssemos aquela herança, ela estaria no nosso pé nesse exato momento.
   – Igual como foi assim que perdemos a mamãe.
   – Igualzinho!
   Vi Linne se revirar naquele sofá velho em que estávamos sentadas, e isso com certeza significava que ela estava incomodada com alguma coisa.
   – O que foi dessa vez? Ainda o estresse por ter que enfrentar a escola pública?
   – Bom, isso também – ela disse, e depois segurou a minha mão. Não era tão comum dela – eu sei que eu não devia, mas fiquei magoada pela tia Núbia. Eu sempre soube que ela ficava tão por perto pelo dinheiro, mas eu nunca imaginaria que sem ele, ela seria capaz de nos negar ajuda.
   Nós não tínhamos a nossa mãe, tampouco nosso pai. Eu não queria que Linne perdesse mais alguém, porque mesmo sabendo que ela só podia contar comigo, seria mais reconfortante se ela achasse ter um familiar – vivo e além de mim – que fosse uma boa pessoa.
   – Não podemos ser ingratas com a tia Núbia, Lin. Sabe que ela nos deixou morar aqui por três meses inteiros, todos os que precisamos até agora.
   – Não estou sendo ingrata, só realista. Tia Núbia esteve conosco desde que podemos nos lembrar, e agora que não temos nada para oferecer, ela não nos convida nem para ficar na casa dela por uns dias já que não podemos ficar aqui. É decepcionante, Júlia! – devido ao estado que ela se encontrava, eu previa que as lágrimas que tinham feito uma pausa voltariam a todo o vapor, e eu não queria ver Lin naquela situação de novo, mas para a minha surpresa ela respirou fundo durante alguns segundos e logo voltou a falar – o que ela te disse quando você a procurou pela última vez? – agora ela pelo menos parecia mais calma.
   Eu não podia mentir e não podia continuar a fingir que tia Núbia era essa boa pessoa e que estaria conosco para sempre. Pensando bem, é melhor que Linne saiba em quem confiar.
   – Ela disse que eu precisava crescer e assumir minhas responsabilidades – contei – seguidamente, me informou o valor da casa e me mandou começar a procurar um emprego.
   – Eu duvido que ela faria isso se existisse a possibilidade da gente reconquistar a herança tão cedo.
   – Eu também acho, mas ela faz parte da nossa família, nos ajudou em certos momentos e não é legal falar tão mal dela assim.
   – Por que será que você sempre tem razão? – Linne revirou os olhos.
   – Deve vir junto da maioridade – pisquei para ela.
   Demorou para terminar aquela conversa e convencer Lin a ir dormir, mas eu precisava ficar sozinha durante o processo que eu estava prestes a iniciar: a criação do meu currículo.
   O que uma pessoa que não tem experiência com coisa alguma coloca num desses?

O contratoOnde histórias criam vida. Descubra agora