Não foi o Destino que juntou aqueles dois, foi alguém que, pelo menos naquela instituição, era até muito mais temido: o Diretor Geral. E não foi pra castigá-los, como os colegas concluíram. Alguns, comemorando. Outros, às gargalhadas.
Os dois viviam no pé do Diretor Geral, ambos com a mesma e exata queixa, diziam não conseguir trabalhar em suas salas porque não era absoluto o silêncio, pelo contrário, havia muita conversa inútil e brincadeiras.
Diante disso, o Diretor Geral teve a ideia de colocar os dois no mesmo setor e consequentemente, na mesma sala. Mudou um pro setor do outro e os dois pra uma sala no fim do corredor. Desse modo, imaginou ter resolvido o problema dos dois; já que ambos queriam silêncio era de se esperar que fizessem.
O pequeno obstáculo que poderia atrapalhar, não atrapalhou. A sala não era tão pequena, cabiam 3 mesas, com certa folga até, mas o funcionário que dividiria o espaço com "aquelas criaturas", pediu até pelo amor de Deus que não. O Diretor Geral, em um raro momento de bondade, atendeu, e deu a sua bênção pra que o subordinado fosse se instalar em qualquer outro canto:
Mas que depois, não reclamasse, hein?
Feitas as mudanças, um pra lá, dois pra cá, começaram um bolão. Foi o que me disseram. Era pra ver em quantos dias eles iam cair na porrada. E sim, foi assim que me disseram: cair na porrada... A dupla era conhecida pelas opiniões radicais e (segundo alguns) estúpidas e também pelo vigor (dos gritos) com que as defendia.
Juntar os dois numa sala era como juntar Coca-Cola e Mentos numa garrafa. Mas o Diretor disse que isso era superstição. Ninguém entendeu, mas também, não discordou.
No primeiro dia, se evitaram, tirando do páreo alguns apostadores. No segundo, trocaram bom dia, bom almoço e até amanhã sem se matar. As expectativas lá no alto. Era questão de tempo!
Mas aí, veio o terceiro dia e o milagre aconteceu!
Naquela manhã cinza de escritório, Silvano chegou cedo como sempre, mas inquieto, murmurando coisas, alisando a careca, o bigode, transtornado. E respirava fundo, e olhava pra um lado, pro outro, pra cima, até que uma hora, sem se aguentar mais um minuto com aquilo dentro de si, soltou:
— Agora pronto, dois homens se beijando na novela. Era só o que faltava mesmo, era só o que faltava mesmo... Falta mais nada... E os nossos jovens? E a família brasileira fica como?
Ao ouvir isso, o outro, Edvaldo, respondeu, como que acordando de um relatório:
— Globolixo! — E bateu a mão fechada na mesa.
Nisso, Silvano lançou um olhar de "como assim?" pra cima de Edvaldo, que olhou de volta, e ambos se sentiram como se, depois de tudo, finalmente fossem compreendidos. Finalmente, um homem de verdade!
Os dias seguintes foram maravilhosos pros dois. Eram como amigos de infância, primos, irmãos, como se tivessem crescidos juntos, uma alma só em dois corpos.
Concordavam em tudo: bandido bom é bandido morto, lugar de mulher é na cozinha, não existe isso de dívida histórica, racismo é frescura, privatiza tudo, beijo gay não! Fora PT! Tem que acabar com isso aí.
Ficaram de tal modo empolgados um com o outro, que pensaram até em fundar um movimento. Pela Família, Deus, pelo Brasil! E chegariam a fundar se não fosse um probleminha.
Era mais uma daquelas manhãs de conversas acaloradas, onde um ia confirmando a opinião do outro e ambos indo cada vez mais longe no radicalismo, quando o pior aconteceu. Silvano olhou pra mão de Edvaldo, reparou em algo e perguntou:
— Que é isso aí?
— Isso o quê? — Quis saber Edvaldo.
— Essa unha pintada.
— É base pô, tá me estranhando.
— É tu mesmo que passa?
— Claro que não. Vou na manicure.
Nessa hora, Silvano tacou com força as duas mãos contra a própria cara que já se retorcia de mágoa e espanto. Ainda boquiaberto e com as bochechas ardendo dos tapas que deu em si mesmo, ele se perguntava: Como assim o seu irmão, macho, homem de verdade, ia na manicure? Não podia acreditar.
Edvaldo tentou argumentar, disse, nada a ver pô. Mas Silvano já não ouvia mais nada. Sentia-se traído, enganado e tudo mais. Pensava que finalmente tinha encontrado um homem de verdade. Não tinha...
Foi falar com o Diretor Geral.
***
Gostou? Não gostou? Comente. Mostre aos amigos. Isso ajuda bastante.
Obrigado!
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Absurdo Dos Comuns
Short StoryAlguns minicontos sobre casos cotidianos com um pouquinho de violência e absurdo.