Confiro meu reflexo novamente no espelho central do meu quarto. Cabelo penteado para trás seguro com quase um pote inteiro de gel. Uma calça de couro preta e uma camisa simples leve. Respiro fundo, treinando meu melhor sorriso galanteador. Sacudo os ombros tentando me livrar da tensão. Hoje é um dia importante.
Alguém bate na porta. Olho no espelho de novo e levanto o polegar dando joinha para mim mesmo. Meus dedos tocam a maçaneta da porta de madeira maciça, puxo-a.
Na minha frente está Carol, primeiro ela estica os lábios em um sorriso carinhoso que faz meu estômago parecer ter mil borboletas. Seus olhos redondos emitem felicidade, seus cabelos pretos e ondulados caem delicadamente pelos seus ombros. Ela dá dois pulinhos no mesmo lugar, eufórica, fazendo seu vestido estampado de rosas balançar suavemente.
Linda como sempre. Mas nada fofa como aparenta.
Isso é o que meu cérebro frisa no momento que ela dá um soco no meu estômago me deixando a procura de ar, depois seus braços enlaçam meu pescoço. Perco o equilíbrio quase caindo de costas.
- É hoje!- ela grita no meu ouvido.- Feliz aniversário, Gael!
- Tá bom, tá bom. Se cada vez que eu fizer aniversário você me der um soco e gritar assim no meu ouvido eu não vou poder mais fazer aniversários.- digo sorrindo.
Ela revira os olhos. Seu olhar recai sobre meu cabelo, ela aberta os lábios tentando conter um sorriso.
- O que?- pergunto sem entender.
- Seu cabelo está ridículo.- ela responde com os olhos carregados de divertimento. Antes que eu possa defender que eu demorei horas para deixar cada fio no seu devido lugar ela enfia os dedos nas mexas do meu cabelo e as bagunça.
- Caroline!- resmungo tentando deter seu ataque ao meu cabelo, mas é tarde demais.
Ela se afasta rindo e eu sento na cama frustrado.
- Eu fiz um favor a você!- ela cantarola andando até o grande espelho que eu havia colocado no centro do quarto.
- Você não tem jeito.- digo desanimado.
Ela se admira no espelho. Ajeita o cabelo e depois as minúsculas alças do vestido que deixam seus ombros expostos.
- Eu nem acredito que vesti esse vestido.- ela começa a falar ainda com os olhos no espelho.- Eu me acho estranha vestida assim. Você acha que eu estou estranha?- pergunta se virando bruscamente, como se sua vida dependesse disso.
- O que? É claro que não.- arqueio uma sobrancelha.- Você está linda.- deixo escapulir.
Merda.
Assim que termino de dizer a última frase arregalo os olhos vendo o quanto dei bandeira. Observo sua reação com cuidado, esquadrinhando seu rosto com medo de que ficasse um clima estranho.
Mas Carol apenas suspira aliviada e agradece se virando para o espelho de novo:
- Obrigada!
Solto o ar devagar. Ela não tinha percebido, ela nunca percebia. Não sabia se me sentia frustrado ou aliviado quanto a isso. Eu não queria que as coisas ficassem estranhas entre nós, nos conhecíamos dês de sempre.
Me lembro de quando nos falamos pela primeira vez. Eu tinha dez anos e estava na sala de treinamento, Lívia tinha acabado de me presentear com meu primeiro arco e flecha. Eu segurava o arco desajeitadamente pegando uma flecha para tentar acertar o enorme alvo que estava a dois metros de distância.
Assoprei um cacho que caia no meu rosto e soltei a flecha, que inutilmente nem chegou a acertar o alvo.
Foi nesse momento que uma garotinha de cabelo preso um pouco mais velha que eu se aproximou. Ela parou ao meu lado, olhando atentamente a distância que estávamos do alvo e a distância que a flecha estava do alvo. Ela estava concentrada, franzia os lábios e ainda alisava o queixo com uma das mãos para dar o ar de quem entendia do assunto.
Depois de parecer calcular as distâncias ela se virou para mim e constatou:
- Você é péssimo.- toda a sua expressão se suavizando com a frase.
Eu estreitei os olhos na sua direção a achando muito atrevida. E confesso que um pouco chocado com sua sinceridade e talvez só um pouquinho impressionado por ela ter falado daquela forma comigo.
Ela deu de ombros como quem sabia que estava falando a verdade. E se apresentou estendendo a mão:
- Me chamo Caroline.
Eu apertei sua mão e respondi:
- Eu me chamo Gael.
- Eu sei quem você é.- ela solta no ar e anda até onde a flecha está, a apanhando do chão e a fincando no centro do alvo.- Você é o irmão da Helena.- sussurra se posicionando ao meu lado.
É, eu sou o irmão da Helena.
Dou de ombros como se não fosse tão importante, apesar de ser. Todo mundo ali sabia que só existia por causa da Helena e ser irmão dela te trás alguns privilégios e honra. Mesmo sendo um pirralho, naquela época eu já entendia isso, e pelo visto Caroline também.
Pego outra flecha e aprumo os ombros mantendo a cabeça erguida com o orgulho de moleque ferido. Solto a flecha com delicadeza, mas a mesma possui o mesmo destino que a primeira. Aperto o arco frustrado e com raiva daquela maldita flecha. Qual era o problema dela? Caroline dá uma risadinha.
- Eu ainda vou ser um bom Caçador dos Medos. Você vai ver!- a desafio de queixo erguido, olhando um pouco para cima por na época ela ser alguns centímetros mais alta que eu.
Naquela tempo eu achei que ela ficaria intimidada com meu olhar. Mas não, a garota olhou dentro dos meus olhos com ousadia e determinação que me fizeram hesitar por um momento.
- Você é pequeno demais para ser um Caçador dos Medos.- ela aponta.- E depois, as garotas são mais habilidosas com esse serviço.- ela termina apertando meu nariz como se eu fosse uma criancinha e sai com o nariz arrebitado.
- Mas você sabe como a Lívia é.- a voz de Carol chega aos meus ouvidos me despertando da lembrança.- Ela disse que não era para eu aparecer na sua festa de 18 anos como se fosse para a guerra. E ela não gosta muito de ser contrariada, então pelo bem da minha cabeça vesti essa coisa horrorosa.
- Ainda bem que você vestiu.- respondo. Apesar de que ninguém aguenta aquele olhar mortal da Lívia.
- Mas olha só!- ela se vira para mim, animada. Carolina pega na ponta do vestido e o ergue um pouco exibindo uma adaga afiada que brilhava a luz do sol, ela estava presa na sua perna musculosa e bem definida por um cinto fino de couro.
Analiso a adaga e mesmo com todos os meus esforços meus olhos correm por sua perna a mostra e que perna meus amigos!
- De qualquer forma eu estou linda e bem preparada.- ela retoma me fazendo desviar os olhos rapidamente da sua perna, envergonhado. Só espero que minhas bochechas não estejam vermelhas.
Que babaca, né Gael?
- Acho que nem mesmo a Lívia faria você sair por aí desarmada.- comento rápido para não parecer desestabilizado. Apesar de estar. E muito.
Outra pessoa bate na porta e eu praticamente corro para abri- la, agradecendo internamente. Essa situação era constrangedora demais para mim. Mas só para mim mesmo, porque Caroline não parecia ter a mínima consciência dos meus sentimentos por ela.
Abro a porta vendo Lívia parada batendo os costumeiros saltos altos no chão. Falando no diabo...
Penso só pelo prazer de provocá- la, sabendo que ela poderia escutar meus pensamentos.
- Não pense que vai me tirar do sério cedo da manhã.- ela sibila entrando no quarto sem ser convidada.- Quero falar com você. A sós.- completa olhando fixamente para Caroline.
Ela entende sua deixa, me dá um soco fraco no braço e me oferece um sorriso de despedida.
-Presidente.- ela cumprimenta Lívia e sai fechando a porta atrás de si com delicadeza. E esse é o efeito Lívia no recinto...
Quando o clik da porta fechada ressoa no quarto toda aquela carranca mal disfarçada da Lívia cai. Em seus lábios se ergue um sorriso simples que lhe chega aos olhos.
- Você deveria falar para a garota que gosta dela.- Lívia ama de ser inconveniente nas horas vagas.
- Eu odeio o fato de que você pode saber o que eu penso.- estreito os olhos na sua direção cruzando os braços.- E nem tente dar seu jeito! Você acaba estragando tudo!
- Eu? Você que é um pamonha e fica esperando que a menina adivinhe que você gosta dela.- e lá estava seu golpe final. Ela tinha razão e sabia, mas isso não mudava a situação. Eu precisava de um sinal para poder investir.
- Sinal ela já te deu, você que é lerdo de mais para entender.- ela praticamente grita.
- Que saco Lívia! Dá pra sair da minha cabeça?- digo nervoso. Isso não é exatamente agradável.
Seus traços joviais estão descontraídos e seus ombros balançam suavemente com uma risadinha que escapa pelos seus lábios. Ela ama me infernizar. Todas as irmãs são assim?
Ficamos por um tempo em silêncio. Encarando um ao outro, eu sustentando uma cara feia como advertência para ela ficar longe da minha mente e ela se divertindo as minhas custas. Nem a pior das caras feias pararia ela.
- Feliz aniversário.- ela fala baixinho. Lívia pisca várias vezes e desvia os olhos para o carpete cinza que está em cima. Meus lábios se esticam em um sorriso preguiçoso, a provocação na nossa relação era mútua.
- Parece que alguém quer chorar.- cantarolo me enchendo de satisfação.
- É claro que não!- ela diz levantando a cabeça e sacudindo os ombros. Mas quando seu olhar se fixa em mim uma lágrima escorre pelo seu rosto.- Droga.- ela passa uma das mãos rapidamente pela face.
Eu rio alto e ela me olha feio.
- Você cresceu tão rápido...Esses dias atrás eu estava brigando para você parar de colocar tinta no shampoo das pessoas e hoje você já está fazendo 18 anos!- sua voz era terna e carregada de emoção.- Não fique aí parado achando que eu vou até aí te abraçar.
Eu não espero muito e a envolvo em um abraço carinhoso. Lívia era um enigma, ela era malvada quando queria, mas não era uma pessoa ruim. Pelo menos nem sempre, ela sempre esteve comigo. Quando meu primeiro dente ficou mole, quando eu disse que queria uma bicicleta, quando eu quis me alistar para os Caçadores dos Medos, quando eu me apaixonei pela primeira vez, quando eu queria quebrar o quarto por achar a vida injusta. Ela esteve comigo quando eu queria uma mãe, quando eu queria conversar com meu pai e quando eu quis conhecer a Helena.
Ela sempre esteve comigo. Ela me criou, cuidou de mim e me amou. Do seu modo esquisito, mas eu sei que era amor.
Aquela Lívia que eu estava abraçando não era a mesma Lívia lá de fora. A lá de fora era a presidente, a responsável por colocar ordem dentro de tudo nesse castelo, era a que andava para lá e para cá com uma carranca no rosto e um olhar que não deixava margens para discussão. Agora a Lívia que eu estou abraçando é a minha irmã.
- Você fica tão fofa chorando.- falo a apertando pelo simples prazer de a irritar.
- Idiota.
Ela esquadrinha meu rosto e pergunta:
- Como você está?
Eu suspiro me soltando do abraço. Essa não era uma pergunta simples quando era feita por Lívia e não era como se eu pudesse soltar um “ estou bem” sem ser exatamente a verdade. É difícil mentir para uma pessoa que pode saber o que você pensa.
Ando a passos lentos até a janela do quarto. Olho para baixo vendo a altura que estávamos, meu quarto ficava em um dos andares mais altos do castelo. Vejo os girassóis dançando ao som do vento, a luz do sol brincando com suas pétalas.
Os girassóis são as flores preferidas da Helena.
Lívia se aproxima em silêncio e fica ao meu lado com o olhar perdido na paisagem. Isso era uma coisa nossa, fazer a pergunta apenas uma vez e a pessoa decidi se responde ou não. Não que isso fosse muito justo, mas me dava espaço.
- Você sabe como o aniversário de 18 anos é importante para qualquer um do lado de cá.- começo a falar sem a olhar.- Eu só, eu só queria que eles estivessem aqui.
Meu peito se aperta. E sensação familiar de abandono me invade e, dessa vez eu não luto contra ela. A deixo me consumir e alimentar meus medos e inseguranças. A deixo me percorrer e apontar o dedo na minha cara. A deixo me sufocar ao ponto de quase ficar sem ar. Me vejo caindo, caindo dentro de mim mesmo, me afogando dentro de lembranças que nunca serão realizadas e de sonhos que nunca passaram disso.
Lívia aperta a minha mão, tentando como todas as outras vezes me puxar para a superfície.
- Eu quero que você viva, Gael. A Helena também quer isso.
Não respondo, não seguro as lágrimas. Só espero até ouvir meu coração se partir em mil pedaços.
- Ela se lembrou de hoje? Se lembrou que hoje é meu aniversário?- pergunto com a voz fraca. Eu não suportaria se ela esquecesse.
- É claro que ela lembrou!- Lívia afirma freneticamente.- Por mais que as vezes você não ache isso, você é importante.- ela aperta minha mão novamente.
Eu dou de ombros, mas no fundo sentindo uma chama de esperança se ascender.
- Sabe Gael a Helena está bem, na medida do possível. Ela lembra de você todos os dias, está casada, terminou a faculdade, teve dois filhos. E ela até colocou o nome do primogênito de Gael. É sua vez agora, é sua vez de aproveitar a vida. A vida já te roubou muita coisa, não deixa ela roubar a sua felicidade também.
Eu sacudo a cabeça em afirmativo. Eu sabia que nunca teria a chance de ter um jantar em família com meus pais e minha irmã. Sabia que nunca poderia bancar o tio babão, sabia que nunca poderia ensinar o Gael a andar de bicicleta e que nunca poderia encarar os moleques que dessem em cima da minha sobrinha Maria Luísa. Mas eu também sabia que eu queria viver, queria ter minhas próprias experiências. Eu quero lutar por aquilo que eu acredito.
Eu detesto mesmo pensar isso, mas a Lívia tinha razão.
- Eu sempre tenho razão.- ela responde piscando um dos olhos para mim.
Eu reviro os olhos. Ela é insuportável. Mas ainda é minha irmã.
- Sabe, eu prometi para a Helena que cuidaria de você. E eu vou Gael.- Eu sabia que ela iria.- Então cuide de descer logo, não deixe os convidados esperando.- ela avisa e começa a andar em direção a porta.
- Há! E mais uma coisa!- ela para bruscamente se virando para mim, seus pés batem as pontas dos saltos no chão e eu imediatamente sei que não irá sair boa coisa.- Se você não tomar atitude logo, eu vou ter que dar meu jeitinho para você se declarar para a Caroline.
Ela solta e praticamente corre porta a fora.
- Nem pense em fazer nada! Lívia!- Eu grito vendo ela sumir no final do corredor.
Fecho a porta frustrado. Ela me paga. Miro a escrivaninha pensando se cumpriria a tradição esse ano. Todo ano no meu aniversário eu escrevia uma carta, também escrevia uma quando me sentia mal ou simplesmente estava com saudade. É bom, me faz ficar calmo e aliviar a enxurrada de emoções que as vezes ameaçava me engolir.
Eu acho que a carta desse ano teria que esperar...&&&&
Oi Gente bonita! Como é que a vida anda?Vamos deixar o primeiro capítulo bem levinho para vocês começarem a entrar no clima, mas ainda virá muitas emoções!
Conferiram na mídia do capítulo a representação do Gael? Não é exatamente assim que eu o imagino, mas foi o que eu achei mais próximo. O que acharam?
Então, quase que esse capítulo não sai kkkk! Foi o maior sufoco para publicar ele hoje, porque a data bateu com outros compromissos e quase que tudo vira uma bola de neve! Mas deu tudo certo no final kkk
Nos vemos no próximo capítulo!
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Presa em um Pesadelo (Concluído)
NouvellesAs vezes ficamos presos em nossa própria mente, vagando sem rumo de um pensamento a outro, presos em um milhão de possibilidades que mudariam o presente. Que alteraria a nossa forma de pensar, de agir e de sentir. E nem sempre conseguimos nos livra...