PARA A VIDA O LIMITE É A MORTE

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Em meio a um desses exercícios sem sentido real para mim recebi a visita inesperada do Dr. cara de abobrinha.

Pediu que me sentasse, pois precisávamos conversar. Quando intentei lhe dirigir a palavra alertando que não era obrigado a lhe tratar como um pai disparou que mamãe sofrera um infarto e então me sentei como inicialmente deveria ter feito.

Me recordei que Dona Elisabeth já havia passado por isso quando discutimos sobre Jullieta e imaginei ser uma indisposição, mas olhei mais a fundo para o Dr. Hermann e compreendi que era um médico e como tal sabia a intensidade do que mamãe tivera e sua expressão não era otimista.

Pedi que dissesse a verdade, na verdade pelo meu tom de voz foi uma exigência.

Me respondeu em um tom controlado de voz que seu coração estava fraco e possivelmente não aguentaria um transplante. Me perguntei quando isso acontecera e imaginei que foi quando me perdi na história do meu casamento, das minhas perdas, das perdas indiretas.

Mamãe estava mais lenta, fazendo algumas coisas com dificuldade. Por vezes colocava a mão no braço e imaginava que era por esforço das costuras, na verdade até Dr. Hermann fora pego de surpresa.

Mamãe estava fraca em demasia. Dr. Hermann passou a reunir as pessoas de nossa família para vê-la, compreendi que havia pouca esperança.

Deixei que toda sorte de pessoas a visitassem para só então visita-la. Estava irreconhecível, talvez não estivesse antes de conhecer seu recente amor.

Nos tempos de papai estava menos revigorada, e apesar do meu coração relutante sabia que estava feliz, reencontrara o sentido da vida e eu egoísta não queria aceitar.

Pálida levou sua mão sobre a minha e sorriu aquele sorriso de quem precisava ser reconfortada, mas estava reconfortando.

Olhava para aquela figura magra, anêmica e me surpreendia a cada lembrança das lutas que travara por mim durante toda minha vida de esquisitices.

As vezes que brigou com professores, alunos, vizinhos, desconhecidos, até com o cachorro inquieto da praça por mim, para que não sentisse que era inadequado, mas eu era e no fundo sabia que era e mais no fundo sabia que ela não queria que eu soubesse então fingia que não sabia.

Mamãe lutou por mim, me ouviu espernear e berrar sem motivo externo enquanto travava minhas lutas internas.

Separou grãos quando pedi, esquentou a comida quando não a queria fria, inventava histórias para melhorar minhas frustrações.

Me batia quando na verdade queria se estapear. Sempre no bumbum, dizia que não doía, mas doía sim, mas também não queria que soubesse, pois sabia que era uma tentativa desesperada de me fazer parar.

Não bastasse travar minhas lutas, travou as do meu mau caráter pai. O assistiu fazendo atrocidades após atrocidades e precisava fingir que tudo estava bem, mas tudo estava desmoronando dentro e fora de si.

Quando papai nos deixou teve que dobrar suas encomendas, correr contra o tempo, inventar horas a mais dentro de uma contagem determinada pela vida. Se chorou não vi, talvez enquanto eu dormia, ou enquanto eu estava no colégio, ou no banho.

Aos poucos fechou os olhos, mas não ainda definitivamente. Quando Dr. Hermann entrou no quarto o encarei como se finalmente compreendesse o que fora na vida de Dona Elizabeth, e então percebi que há coisas que apenas compreendemos quando já é tarde demais.

Aquele homem reergueu os escombros deixados por papai. Pacientemente reergueu tijolo por tijolo, como a casa que mamãe ilustrava pra me acalmar.

Ele foi a calmaria de mamãe, quando tudo parecia ruir e o vendo ali, com a feição da profunda calamidade estampada em seu rosto percebo que mamãe também o salvou de algo, mas por meu egoísmo não me interessei em saber.

Apenas me restou sorrir desajeitado, não sabendo se compreenderia que era minha forma de lhe agradecer por tudo que fizera pela mulher mais incrível da minha vida.

Dr. Hermann se aproximou e colocou a mão sobre meu ombro. Parecia compreender minha natureza e sabia que contatos não eram momentos mais esperados no meu dia a dia.

Me convidou para um café e permanecemos um longo tempo falando sobre trivialidades e em como o jornalista do jornal das oito ainda tinha cara de tomate.

É um momento que sempre lembro com clareza, pois foi o momento que mais me senti a vontade com sua presença. Não precisei forçar amizade ou simpatia ou qualquer sentimento que não saberia esconder. Estava tranquilo, feliz por tê-lo ali por perto naquele momento tenso.

Me recordo de passar a noite ao lado de mamãe e acordar com um cobertor sobre mim. Compreendi que fora ele, que nem dormido deve ter conseguido. Apesar de espirrar por conta do tecido o qual ele era feito, sorri agradecido.

Olhei para o lado e o leito de mamãe estava vazio. Me levantei de sobressalto e logo no corredor vi Dr. Hermann e pelo seu olhar compreendi que mamãe deixara a vida.

Passei a mão pelos cabelos com o olhar perdido e com passos largos me dirigi até a saída do hospital procurando ar.

Em meio à multidão de passos desgovernados me rompi, tive uma crise, comecei a me balançar como há anos não fazia e então me debater, sem controle.

Alguns curiosos tentaram me conter e então Dr. Hermann apareceu e disse para me deixarem ali. Esperou meu descontrole cessar ali agachado ao meu lado, sem se importar com os olhares de curiosos, aos poucos me acalmei, olhei para ele, lhe estendi a mão e me conduziu de volta ao hospital. 

PARA SEMPRE JULLIETAOnde histórias criam vida. Descubra agora