São Paulo, Ano de 2020.
A chuva caía fina e abraçava o meu rosto como uma agulha a açoitar minha pele, mas eu não me importava. Na verdade, para falar bem a verdade, eu não me preocupava com muita coisa há muito tempo.
Tinha acabado de completar dezoito anos e mais um mês e terminaria o ensino médio. Os vestibulares batiam à minha porta como um fiel cobrador batem à porta do devedor, mas eu simplesmente não me importava. Não me importava com mais nada.
Se eu falasse isso para meus pais, deixaria eles preocupados. Achariam que eu estava entrando em depressão e avidamente procurariam um psiquiatra urgentemente. Eu não queria que eles fizessem isso. Conhecia-me bem o suficiente para saber que aquilo não era uma depressão. Era somente a sútil presença da realidade que me convidava a encarar a efemeridade da vida.
Naqueles breves minutos caminhando para casa, fiquei a pensar na vida. Talvez porque eu tivesse visto uma aula de filosofia de Albert Camus e sua teoria do absurdo¹(nota) e agora não conseguisse deixar de pensar no absurdo que era viver, no absurdo que era sempre encontrar motivos para viver. Eram tudo ilusões.
Naquele momento mesmo, enquanto olhava as pessoas andando na rua imaginava o que pensariam, quais os objetivos que as mantinham em pé, correndo de um lado para o outro, procurando alcançar seus sonhos.
O homem de terno, falando no telefone, parecia cogitar a ideia de ser chefe. Talvez agarrasse essa vontade com unhas e dentes e inclusive almoçasse rápido ou desse pouca atenção para os filhos. A moça grávida que conversava com sua mãe, provavelmente não via a hora do bebê nascer para comprar as coisas que sempre ficavam para última hora...
Já eu... bom.... eu talvez já desde que nascera já fui adepta do absurdismo, porque não conseguia ver sentido para minha atual existência, não via algum sonho no qual quisesse batalhar fielmente, nem mesmo se esse sonho fosse me manter viva.
É, talvez meus pais pudessem estar certos, eu estava um pouco depressiva.
Mas a verdade é que eu não queria também me iludir com um futuro de sonhos. Havia tanto para sonhar, mas também tanto para perder...
Meus pais podiam não saber, mas eu sabia que eles conversavam todo dia de madrugada sobre a possibilidade de eu ser doente. Alguma coisa que dizia respeito aos meus pais biológicos. Porque eu era adotada e muito embora não tivesse vontade alguma de conhecer o casal que tinha me jogado fora, eu também torcia para que eles não tivessem feito o favor de me tirarem a esperança de viver por conta de algo que pudessem ter me passado. E por esse motivo, eu não fazia planos.
Planos eram perigosos quando você podia morrer a qualquer momento.
Suspirei enquanto olhava o céu nublado mais uma vez. A avenida paulista estava lotada de indivíduos mal educados a quase furar os meus olhos com seus guarda-chuvas enegrecidos e opacos a afastar a água. No entanto, vez ou outra aparecia um esquecido como eu, que fosse estrangeiro na sua própria terra natal, e que porventura naquele dia tinha esquecido o seu guarda-chuva em casa. Nós compartilhávamos da nossa amargura diante das gotículas frias da água que açoitava nossa pele.
Mesmo assim, continuávamos andando. Ou, como alguns de nós faziam, corríamos.
Os arranhas céus pareciam indiferentes a minha tristeza, como toda aquela nuvem de pessoas que caminhavam pela avenida principal. Embora eu me preocupasse com o destino daquelas vidas absurdas, a verdade é que era somente mais uma solitária dentro do seu próprio universo interior tentando encontrar alguma coisa que não tinha nome, mas que latejava de forma latente dentro de mim. Parecia somente a esperar o momento ideal para sair.
Todos nós vivendo em seus mundos interiores refletidos na superficialidade das relações. Eu era somente mais uma mulher nas ruas diante de tantas com seus afazeres. Talvez a única diferença era que eu já deveria ter parado de andar sem rumo e entrar num metrô rumo a minha casa. Contudo, embora tivesse saído do colégio, ainda estava perdida dentro de mim mesma.
Como o meu último ano era feito junto com um povo do cursinho, eu não precisava vir de uniforme. Bastava a carteirinha de estudante. Nesses casos, contudo, preferiria o uso do uniforme. Por conta dessa maldita facilidade, eu tinha saído de casa com um short jeans e uma blusa de meia manga e estava tremendo de frio encolhida nas minhas poucas roupas naquela chuva de verão maldita.
Era muito azar.
Olhei o celular que já apitava com o nome de mamãe e não atendi. Fingiria que não tinha visto porque estava no metrô. Isso significava que já estava na hora de eu voltar e, por isso mesmo, dei meia volta e decidi no meio da rua que deveria voltar e pegar o metrô.
Depois dessa minha decisão abrupta, tudo o que aconteceu foi uma nuvem de sensações desconexas. Alguém gritou "Cuidado menina!" do outro lado da avenida. Em vez de sair da rua, eu apenas procurei quem havia gritado. Era uma voz masculina, eu tinha certeza. Contudo, o tempo que eu demorara procurando a voz foi suficiente para que eu ouvisse uma freada, percebesse que ia ser atropelada e fechasse os olhos assustada.
O segundo seguinte eu cai estatelada no chão. A dor, ainda que forte, nada se assemelhava à dor de uma batida de carro, se é que eu pudesse dizer que sabia como era isso. Não sabia mesmo.
Quando abri meus olhos, tal foi a minha surpresa ao perceber que não estava numa rua qualquer na avenida paulista. A chuva caía mais intempestiva sobre minha cabeça, molhando meu corpo por inteiro. Contudo, não era o barulho de motor de carro que povoava a região onde eu estava. Muito longe disso.
Arregalei os olhos pensando em como eu tivera o sonho mais realista de todos os tempos da minha vida.
Diante de mim, bem na minha frente, havia quatro soldados sorrindo bastante enquanto uma jovem criança agarrava a minha mão como se eu pudesse a salvar daquele destino frio e arrepiante, que aparentemente, nesse sonho sem nexo, eu também poderia ter o mesmo fim. Engoli em seco enquanto me assustava com os barulhos de tiro passando tão perto que pareciam mesmo a alguns metros de mim.
E então pensei em como eu devia estar com problemas mentais, estudando muito, nervosa demais com o vestibular, sei lá, qualquer coisa do tipo.
Porque, aparentemente, pregando peças, minha cabeça tinha decidido sonhar com uma realidade alternativa da guerra.
Ou como naquela época ela era conhecida: A Grande Guerra.
¹ NOTA: ABSURDISMO ou TEORIA DO ABSURDO - Refere-se ao conflito entre a tendência humana de buscar significado inerente à vida e a inabilidade humana para encontrá-lo. Ou seja, há uma busca individual por sentido em um mundo em que tudo o que rege é a falta de sentido provida pelo universo. Como seres que buscam significado para a vida em um mundo sem sentido, esbarra-se em duas opções para viver: Ou que a vida não tem sentido, simples assim, ou que a vida contém nela um propósito definido por uma força maior - uma crença em , ou a aderência a alguma ou outro conceito abstrato. Normalmente, a crença em Deus.
A Luísa num primeiro momento optou pela primeira opção, de que a vida não tem sentido e acabou.
Agora resta saber se ela vai continuar com essa ideia da vida agora que foi teletransportada para plena Guerra Mundial...
Espero que gostem =)
Próximo capítulo já aparece o Liam =)
Bjinhoos
Diulia.
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A Grande Guerra e o Amor.
RomansaLuísa já estava desistindo da vida quando foi levada para o meio da Grande Guerra, como era conhecida na época a Primeira Guerra Mundial. Liam, por sua vez, não desiste de viver, pois apesar dos intempéries, acredita que Deus tem um propósito para...