A Cabana

32 0 0
                                    

No meio daquela confusão em que o país estava, Marcia apressava o passo. Passava por canhões, tanques e lixo, sempre de cabeça baixa. A adolescente de cabelos ruivos e cacheados naquele momento não perdia o foco em chegar a casa de seus amigos. De acordo com as leis do país, mulheres eram proibidas de olhar nos olhos dos homens "escolhidos" em lugares públicos, caso contrário abriria margem para um possível estupro coletivo, por isso a menina andava ligeiro, sempre olhando para um ponto fixo no chão a sua frente.

A algumas quadras dali, sua mãe Izadora aguardava por alguma notícia da menina, ela sabia que sua filha não voltaria no mesmo dia já que a tarde findava e estava perto do toque de recolher das sete da noite. Para ela uma notícia nunca era demais e a menina sabia disso. Era certo que ao chegar na casa dos colegas, a menina entraria em contato. Enquanto isso não acontecia, ela consumia mais um cigarro e tomava uma xícara de chá quente com ervas fresquinhas que ela mesmo havia colhido no seu quintal.

Marcia caminhava ligeiro entre as ruas e vielas da pequena cidade que já havia sido capital do antigo estado derrubado no confronto de estados chamado Espírito Santo, seu olhar para o chão presenciava as ruínas das tragédias que ali tinham ocorrido, era uma mistura esquisita de poeira, pó de minério de uma antiga mineradora e pequenos pedaços de ossos, resquícios de massacres originados de conflitos políticos, que o governo fazia questão de deixar como lembrança.

De repente ela percebeu que alguém a seguia... Ela não podia olhar para trás mas tinha a exata sensação de que alguém a seguia naquele momento. Sua respiração acelerou, seu coração pulsava cada vez mais rápido... a menina tentava desviar entre as pessoas e escombros mas a sensação cada vez se confirmava. Ela apertou o passo ainda mais, até que uma pessoa se jogou na sua frente...

-- Surpresa!

A menina levou um susto desconcertante! Ao levantar o olhar viu que era Tom, um dos seus amigos, ele fez questão de buscá-la no caminho e acompanhá-la até o local de encontro que naquele dia era a casa dele.

-- Tom! Que susto, como você pode brincar com essas coisas?! -- sussurrou a menina advertindo o amigo lhe aplicando um beliscão na barriga.

-- Ái! Era só brincadeira... -- respondeu o amigo em um modo mais despreocupado. -- Eu só queria ver se você estava esperta. Afinal acho que hoje vamos travar uma das guerras mais épicas da nossa campanha de RPG... Não me aguento de tanta expectativa!

Tom era um menino simples, de família de antigos professores e que gostava de pregar peças nos colegas. Negro, pobre e filho de magistrados, o Brasil não era bem o lugar que o menino e sua família queriam ficar, mas, como toda a escória foi proibida de sair do país, sua única alternativa era aguardar por uma oportunidade imigração ou fuga para qualquer lugar do mundo, onde encontrassem mais respeito e dignidade. Enquanto isso não acontecia, o que o garoto sabia fazer de melhor era contar histórias de terror e narrar campanhas de RPG para brincar com os seus amigos.

Não demorou muito para Tom e Marcia chegaram à casa onde ele morava, ao abrir a porta a menina notou o cheiro do café que o pai de Tom estava preparando.

-- Nossa Tio Paulo! Que cheiro delicioso! Minha mãe que não me ouça, mas você faz o café mais cheiroso de todos!

O pai de Tom riu baixo e respondeu a menina.

-- Claro, pode deixar que eu não conto. Esse é o nosso segredo. Se quiser, ficará pronto daqui a pouco.

-- Ahh! Esse meu marido tem realmente talento para a cozinha -- reafirmou Ana, mãe de Tom -- Eu já disse para o Paulo que eu me casaria com ele novamente só pelos seus dotes culinários. -- completou ela.

-- Não fala alto que qualquer hora dessa os escolhidos escutam e estamos lascados querida! -- retrucou ele com um ar cômico.

Marcia e Tom adentraram a casa e com passos ligeiros foram para a cabana, que nada mais era do que um local escuro da casa onde jogavam RPG à luz de velas, o que dava a sensação de estarem em uma cabana no meio da floresta e por essa razão nomearam esse lugar com esse nome. Na casa de cada um do grupo tinha uma cabana, e ali na casa de Tom esse local era o porão.

Os dois adolescentes foram descendo as escadas para encontrar com os outros amigos que aguardavam ansiosamente a chegada dos colegas, tudo isso porque haviam combinado mais uma batalha histórica na terra de gigantes, elfos, anões e goblins. E lá estavam eles, todos os esperando.

-- Ei! Vocês demoraram! -- Disse Bruno, primo de Tom que morava no mesmo quintal do garoto e ajudava seu pai durante a semana a consertar equipamentos, assim ele garantia uns trocados para ajudar seu pai. Apesar do ritmo puxado de trabalho, o menino conseguia tirar um tempo do dia para brincar com seus amigos. Ele tinha muito talento manual e com o manuseio com equipamentos, havia aprendido muito sobre mecânica e elétrica com seu pai e tinha a mesma aptidão. O menino não sabia quem era sua mãe, tudo que seu pai lhe dissera é que ele era fruto de um relacionamento proibido, que a família de sua mãe não havia aceitado o relacionamento deles e nunca permitiu contato do menino com sua mãe. Mas, apesar de toda essa confusão o menino foi criado com muito apreço e dedicação por seu pai, que não media esforços para o educá-lo da melhor maneira possível e repassar tudo o que sabia para que Bruno tivesse uma fonte de renda mesmo na sua falta. Afinal, do jeito em que as coisas estão tudo podia acontecer a qualquer momento.

No porão também estavam os gêmeos Lucas e Carla organizando o tabuleiro e os dados para a aventura. Eles eram vizinhos de Tom mas não se sabia muito sobre seus pais, os meninos sempre estavam por perto e gostavam muito de uma aventura, por isso Tom sempre fazia questão de convidá-los.

-- Ei pessoal, quantos dados iremos utilizar? --Perguntou Carla.

-- Eu não achei todos ainda na sacola. --Afirmou Lucas.

-- Não se preocupe, eu trouxe de casa. --Respondeu Marcia tirando sua sacola de dados do bolso da jaqueta.

-- Caramba, que bom, Carla e Lucas estavam discutindo e acabaram deixando cair os dados, achei que acabaríamos abortando a nossa aventura por causa disso! -- Exclamou Bruno.

E assim iniciaram mais uma noite de aventuras na casa de Tom...

EscóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora