O Reencontro

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Ao saírem da casa, o silêncio da cidade era muito esquisito. Acostumados a ver a praça Costa Pereira cheia de soldados e pessoas, o silêncio era algo novo para eles, ainda mais em plena luz do dia. As pessoas e soldados não estavam por ali. Ao observarem o arredor com mais atenção viram que havia mais corpos caídos do que o normal, o cheiro de sangue fresco não deixava mentir que algo havia ocorrido recentemente. A cena era avassaladora... Crianças, mulheres, idosos, homens... Todos mortos. Ao longe na direção da avenida beira-mar, vinha caminhando na calçada de um antigo teatro um homem que parecia ter um braço metálico revirando os mortos no chão, como quem quisesse garantir que que o trabalho havia sido concluído com eficiência.

-- Gente, eu estou enlouquecendo, ou aquele moço tem um braço de ferro? -- Perguntou Bruno.

Ana e Tom não conseguiram entender o que estavam vendo e não conseguiram notar o que Bruno havia dito. Logo depois um grupo de pessoas com armas na mão viraram a esquina do teatro, depressa foram aparecendo mais e mais até cobrirem parte da praça. Eles claramente conheciam o primeiro soldado apesar de seus uniformes serem diferentes, enquanto a farda do soldado com braço metálico era toda preta, a deles era malhada, parecia do governo.

-- Vamos, ali! -- Apontou Marcia para baixo do caminhão parado que estava bem próximo e fora do alcance do olhar dos militares. E assim foram um a um, bem devagar para não serem notados. Quando menos se esperava, eles estavam sentados debaixo do caminhão, encolhidos para não serem encontrados.

Eles observaram por um bom tempo o movimento daqueles soldados, tentando entender o que havia acontecido ali e ao mesmo tempo tentando achar uma brecha para seguirem em direção antigo terminal aquaviário.

-- Caramba! aquele braço parece ser uma arma! -- Sussurrou Tom.

-- Só pode. É nitidamente um tipo de arma. -- Respondeu Marcia que neste momento não sabia se aquilo tudo ainda não passava de um sonho esquisito.

Na realidade, era um homem forte, sem cabelo e pelas roupas, era de algum grupo especial dentro das forças militares. A arma que ele tinha ele tinha era o seu antebraço. Era algo parecido com uma metralhadora giratória.

Tom estava muito abalado, o adolescente não havia tido tempo de digerir o que havia acontecido com sua mãe, e ao mesmo tempo não sabia onde o seu pai estava. Esse sentimento misturado a adrenalina que estava sentindo culminaram em um grande vazio no peito do garoto. De repente Tom começou a chorar, era uma mistura de raiva e medo que traziam toda aquela angústia ao coração daquele adolescente desfavorecido. Nesse momento estavam todos escondidos em segurança, e aparentemente a poeira tinha dado uma baixada, os soldados estavam distraídos conversando.

Não passou muito tempo, os adolescentes notaram uma movimentação mais próxima. Marcia logo avistou as pernas de um soldado bem perto, vindo em direção ao caminhão. Reagindo àquela situação ingrata, Marcia abraçou Tom em prantos, olhou nos olhos dele, enxugou suas lágrimas e pelo olhar pediu que o menino não fizesse barulho naquele momento.

Marcia morria por dentro em ter que que fazer aquilo com Tom, mas sabia que o silêncio naquele momento era o que poderia salvar suas vidas. Então, engolindo o choro, Tom respirou e se acalmou.

Quando notaram, todos aqueles soldados agora estavam agrupados ao lado do caminhão. Haviam soldados por toda a parte.

O homem que tinha uma arma no antebraço pedia silêncio. Mas os soldados estavam comemorando e conversando alto. Sem muita opção, o soldado levantou seu braço metálico para o alto e disparou um tiro chamando a atenção dos demais.

-- Atenção! Silêncio! -- Ordenou, o soldado.

Todos se calaram no mesmo instante e prestavam atenção. Marcia, olhou nos olhos de Bruno estagnada em confirmar que o braço era realmente uma arma.

-- Soldados! Hoje é um dia para ficar na história desse país. Um dia de libertação. Um dia de comemoração. Nesse lugar, nós libertamos a alma de vários indivíduos que não tinham mais futuro. Tudo o que essa escória fazia era uma aberração, eles consumiam os poucos recursos naturais que nos restaram. Não dividiremos absolutamente nada com essa imundície. Nós acabamos com a escória nessa região, e assim como fizemos aqui, faremos em mais lugares. Nosso mentor maior, o dirigente supremo da nação ordenou a dizimação dessa raça inferior. E nós, meus caros soldados, somos a ferramenta do grande regente.

Todos comemoravam arduamente as palavras naquele momento, mas o soldado continuou.

-- Nosso combustível é esse meus amigos, é isso que nos move. Seremos um país livre desse câncer que assola essa nação. Nós militares somos o motor para que os escolhidos sigam conduzindo o país, e ao contrário dessa gente infeliz, sabemos qual é o nosso lugar nesse país. Sabemos qual é o nosso papel. Seguiremos defendendo com nossas vidas o grande regente.

Mais gritos soaram comemorando, em seguida repetidamente exaltavam o soldado bradando: Victor! Victor! Victor! Revelando aos adolescentes o nome do soldado.

Victor, levantou novamente o braço e os demais pararam sem necessidade de outro disparo.

-- Senhores, abram espaço para a nova geração, os próximos soldados, por favor, abram caminho.

Os soldados foram se afastando, e parecia que algumas pessoas passavam por entre aqueles homens, a visão de baixo do caminhão não permitia que os meninos vissem ao certo quem eram esses novos soldados. Victor foi para perto do caminhão e ficou de costas para onde estavam os meninos. Com isso os soldados se aglomeraram em um semicírculo na frente de Victor, e só então Márcia e os demais conseguiram enxergar com mais clareza. Era um grupo de sete crianças e adolescentes andando acorrentadas nos pés e nas mãos, todos de cabeça baixa.

-- Lucas e Carla estão lá! -- Sussurrou Marcia com um ar assustador.

-- Caramba, não conseguiremos tirar eles dessas correntes. O que faremos? -- Questionou Bruno.

Marcia percebeu que no outro lado do caminhão não haviam mais soldados e acenou para o outro lado, como quem pedisse aos demais para seguirem aquela direção.

Sem entender o porquê, mas ao mesmo tempo concordando, os três saíram por trás do caminhão, lado oposto ao que os soldados estavam naquele momento. Mas eles sabiam que estavam bem perto e poderiam ser notados a qualquer momento. Marcia, se escondendo na ponta do caminhão olhou com cuidado para os amigos. Lucas a viu, e no mesmo instante que o menino identificou, estampou desespero na sua face, ele sabia que não poderia levantar suspeita que seus amigos estavam ali e como quem quisesse realmente chamar atenção, o menino subitamente caiu no chão. Os soldados acreditaram que ele estivesse desmaiando por causa do sol e, mesmo não se importando muito com o que poderia acontecer, eles sabiam que era importante o ingresso de novos soldados e foram socorrer o rapaz.

-- Esse aí não presta nem para lavar os pratos! -- Grunhiu um dos soldados.

Então, todos começaram a rir e a barulheira recomeçou novamente, todos voltaram à estaca zero. Conversavam novamente como animais.

Já não restava outra alternativa aos três amigos, eles precisavam aproveitar aquela desatenção dos soldados para fugir pelo lado oposto. E assim o fizeram, passo a passo, poste por poste, carro por carro foram se afastando até chegarem na avenida beira-mar, o ponto de encontro de Izadora era nessa avenida a poucas quadras dali.

-- Não podemos simplesmente ir andando pelo meio da avenida nem na calçada, com certeza quem passar nos notará. -- Afirmou Tom, com toda sua experiência em mestrar aventuras de RPG.

-- Vamos ir pelas pedras que ficam logo aqui em baixo. -- Exclamou Bruno.

E assim foram eles, andando e saltando entre as pedras que ficavam abaixo do nível da rua, onde a água batia. -- Cuidado para não se cortarem nos mexilhões -- pediu Marcia.

Depois de um tempo andando, Márcia começou a chorar não concordando com o que fizeram. Sentia o choro vir com um gosto amargo da culpa pois era cruel ter que deixar os amigos naquele lugar. Por outro lado, ela sabia que nada poderia fazer, e acabou tendo que se apegar nisso para não deixar que a tristeza a atrapalhasse e eles acabassem acorrentados como seus amigos. Ela precisava chegar até o antigo aquaviário.

Tom parecia se recuperar aos poucos. Ele não tinha como desabar naquele momento. Mas a falta de esperança estava estampada em seu olhar. Parecia que ele os seguia como um moribundo, sem alma, ele apenas continuava andando.

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