Apartamento Nº 4 - Doce de leite

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Dona Guilhermina sempre foi trabalhadora. Aos 6 matava galinha com o irmão de 2 anos no colo, mas este se foi por uma pneumonia muito cedo, aos 10 anos de idade.

Ela perdeu a mãe cedo também, em trabalho de parto do terceiro filho, que nasceu enforcado e morreu junto. Dona Guilhermina viu a morte várias vezes, por isso, não tinha medo. Ela só teve o pai, que a ensinou a caçar passarinho para comer, e o tempo certo de cada pé dar seu fruto.

Porém o pai de Dona Guilhermina era muito possessivo, e ameaçou o primeiro namorado dela de morte, o que fez o garoto de 14 anos, desistir da jovem Guilhermina no auge de sua puberdade. Com o segundo namorado, aos 16 anos, Guilhermina decidiu se arriscar e fugir, para que assim, o pai não pudesse proibir o romance. Esse namorado, chamado Samuel, acabou sendo convocado para servir na segunda guerra, e Guilhermina passou os anos seguintes aprendendo a costurar para se manter.

10 anos após o fim da guerra, Guilhermina engravidou de gêmeos, e era um casal: Adalto e Marília.

Dona Guilhermina sempre lhes deu amor, principalmente na década de 80, quando Samuel morreu de dengue hemorrágica, e os gêmeos estavam ingressando na universidade.

Dona Guilhermina vendeu a casa que Samuel pusera no nome dela, para pagar o curso de medicina de Adalto, e aprendeu a fazer artesanato além de costurar, para pagar o curso de pedagogia de Marília.

Hoje, Dona Guilhermina se via sozinha, com o aluguel atrasado, tendo um filho médico e uma filha professora que não a deixavam ver seus netos, e por isso, de tamanha solidão, ela passava todos os dias ocupando a mesma mesa perto da janela da delicatessen, esperando alguém notar sua angústia e sentar-se com ela, para lhe fazer companhia.

- Bom dia, Dona Guilhermina! - Se dirigiu a ela, Dona Dulce, a síndica.

- Bom dia, Dona Dulce! Como vai o marido?

- Mal, acordou com o pé inchado, deixei sentado na poltrona com os pés na água quente.

- É a idade, haha! Chega para todos! - Disse Dona Guilhermina.

- E os netinhos, como vão?

- Já tem 6 meses que nem ouço falar neles.

- Então eu acho que a senhora não ficou sabendo.

- Sabendo do quê?

- A nova mulher do Adalto anda batendo na Cristal. Eu soube pela minha sobrinha que é do conselho tutelar, dizem que foi uma vizinha que denunciou. - Falou, Dona Dulce.

- E quem "aquelazinha" pensa que é para bater na minha neta? Eu vou ligar para o Adalto, e é agora! - Dona Guilhermina se levanta espumando de raiva, e vai até a parte de baixo da escada, onde está mais silêncio, discando o número do filho.

*ligação*

- Essa chamada está sendo encaminhada para a caixa postal.

- QUE DESGRAÇA, ele mudou de número de novo! - Dona Guilhermina sobe as escadas e dá de cara com Manuel, o marido de Dona Dulce.

- Ah, olá, Dona Guilhermina. - Ele fala.

- Olá, Seu Manuel. Desculpe, estou um pouco apressada.

- Bom, eu precisava falar com a senhora. O que vai fazer é muito importante?

- Sim, mas agora estou curiosa, me diga.

- É que ligaram para o fixo lá de casa, dizendo que vão precisar cortar sua luz. Já está mais de 2 meses atrasada. - Disse, Seu Manuel.

- Eles não passaram nenhum número onde eu possa entrar em contato para negociar?

- Não, a senhora não cumpriu seus últimos acordos.

- É que a aposentadoria do Samuel está ficando toda na mão dos meus filhos, e meu reumatismo está atacando, não estou conseguindo costurar esses dias, e eu preciso da energia quando eu for voltar a costurar. Olha, já estou quase melhor! - Diz Dona Guilhermina, abrindo e fechando a mão com uma certa dificuldade.

- Desculpe, mas acho que para alguém tão necessitada, o aluguel daqui não é algo alcançável.

- Estou aqui de favor, sinto que devo minha vida a Dulce por essa ajuda.

- É bom a senhora ir na empresa de energia para negociar pessoalmente. E aproveite para comprar doce de leite para as crianças do bairro, para o evento de halloween que vai ter hoje.

Dona Guilhermina acena com a cabeça e sobe o resto da escada até o apartamento de número 4.

Era 31 de outubro, 9:30 da manhã, quando Dona Guilhermina, de 97 anos, sem expectativa alguma de vida, longe dos filhos e netos, totalmente esquecida, sem poder trabalhar, sem comida no armário, morando de favor, e com a luz prestes a ser cortada, pega um varal e amarra no basculante do banheiro, e acaba por tirar a própria vida.
Em momento algum foi o que ela quis fazer, mas ao se ver sem saída, sem maneiras de convencer os filhos a lhe deixar ter contato com os netos para assim os proteger, se notando atrás de uma migalha de afeto, e além disso se encontrar numa situação financeira de tamanha humilhação, foi o que fez, porém enquanto sufocava, se arrependeu, mas já era tarde demais...

Edifício e Delicatessen Veneza do Melaço.Where stories live. Discover now