Apartamento Nº 5 - Rapadura

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Dia 26 de outubro. Melissa, se levanta e vai até a geladeira, mas tudo que encontra é uma caixa de leite e uma embalagem de salada no pote que ela comprou no dia anterior enquanto entregava currículos. Na embalagem tinha apenas 2 folhas de alface, cascas de pepino e um líquido roxo que escorreu da beterraba. Ela se serve de um copo de leite e vai até a varanda para conversar com seus bonsais.

A manhã termina sem que ela note, então ela toma um banho rápido, coloca seu colar religioso, pega um cup noodles apimentado no armário, o prepara rápido e sai descendo as escadarias enquanto come.

- Senhorita Melissa, já vai procurar emprego de novo? - Fala Dona Dulce, quando esbarra com ela nas escadas.

- Sim, não posso ficar para sempre lavando a louça da delicatessen em troca de prazo estendido no pagamento do aluguel.

- Falando nisso, vou precisar da sua ajuda dia 31 por causa do evento de Halloween, acredito que isso aqui vai lotar.

- E como eu faço para servir os doces para as crianças que quiserem rapadura? - questiona, Melissa.

- Eu lhe arrumo uma cesta, e você pode deixar ela na frente da porta para as crianças se servirem.

- E quanto ao dinheiro? Mal tenho para me alimentar, como vou comprar doces?

- Eu lhe ensino uma receita caseira, a mesma que uso na delicatessen, daí você pede uma xícara de cada ingrediente aos vizinhos e faz. Tenho certeza de que irão ajudar.

Melissa acena com a cabeça e dá as costas para descer as escadas, até Dona Dulce se dirigir a ela novamente:

- Eu tenho uma dúvida, é sobre esse seu colar, o que ele significa? Eu sempre vejo você com ele.

- Representa a deusa da fertilidade, eu sofri com infecção nas trompas que me impossibilitou de ter filhos...

- Mas você tem namorado? Eu nunca o vi. - Interrompeu, Dona Dulce.

- Tinha, ele me deixou quando soube da minha infertilidade. Essa infecção desenvolveu com uso prolongado de absorvente interno. Tentei inseminação e nada funcionava, então fiz uma promessa para a deusa Danu para engravidar.

- E você engravidou?

- Sim, mas a criança nasceu especial, e minha mãe decidiu cuidar dela e arcar com as despesas básicas e de medicamento até eu conseguir um emprego fixo.

- E você acha que foi por obra dessa Danu?

- Sinceramente, eu acho.

- Já eu, acho que você não consegue emprego por causa desse pingente enorme com esse símbolo que qualquer pessoa julgaria como satânico. Não que eu ache que seja, mas as pessoas devem pensar isso. Você entende, né? Não quero ser grosseira, nem nada, mas seu pedido não foi muito bem realizado, a criança veio diferente. Você não pode tirar o colar para procurar emprego? Tenho certeza que...

Melissa respira fundo e interrompe:

- Apenas tenha uma boa tarde, Dona Dulce.


Ela vai até a biblioteca pública, onde sempre lhe ajudavam imprimindo seus currículos gratuitamente, e imprime um comprovante de inscrição.

Dia 27. Ela rega os bonsais e pega a integração das 7:30 até a cidade universitária, onde vai caminhando até o prédio de ciências sociais, e passa o resto do dia com a cara enfiada em livros de pedagogia e comunicação interpessoal, rotina que ela vinha seguindo há mais de um mês. Dias apenas para entregar currículos, e dias apenas para estudar para o concurso público de Jaboatão dos Guararapes, onde ela tentaria o cargo de professora, já que acabara de terminar a pós-graduação.

Na volta para casa, às 20:00, mais um trajeto com pregação evangélica no transporte coletivo.

- Queria ver se fosse qualquer outra pessoa, com outra crença, gritando sua fé como a única e verdadeira, se vocês iam achar confortável. - Disse Melissa com um certo tom de voz que fez todos olharem para ela, mas ela não se abalou, já estava acostumada.

O resto da viagem foi recebendo oração da porta-voz dos pregadores, que cismou que ela tinha um encosto. "Era melhor eu ter ficado calada..." ela pensou.

Dia 28. Melissa acorda cedo e vai fazer a prova do concurso.

Dia 29. Melissa acorda várias vezes durante a manhã, mas se recusa a levantar em todas elas, sempre voltando a dormir e acordando novamente alguns instantes depois. Isso era a ansiedade que a assolava.

Dia 30. Melissa passa a manhã discutindo em um grupo do Facebook sobre a forma como o plantio de bonsais privava a liberdade de crescimento da planta, até que ela nota que sua visão estava errada. Durante a tarde, Melissa levou seus bonsais para o parque e os plantou num espaço agradável.

Dia 31, 11:37 AM. Dona Dulce bate na porta de Melissa e passa a receita da rapadura pela fresta embaixo desta. Melissa recolhe a receita do chão e vai até a vizinha de cima, que tinha transtorno esquizofrênico (o mesmo transtorno da filha de Melissa, o que aproximou-as como vizinhas), para pedir alguns ingredientes.

- Feliz Samhain, Elizabeth!

(...)

Edifício e Delicatessen Veneza do Melaço.Where stories live. Discover now