| 15 | BEM VINDA DE VOLTA

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Eu poderia dirigir por horas sem parar, não me cansaria. Estava inerte a qualquer vestígio de sentimento. As batidas do meu coração eram lentas, inexpressivas. Era como uma máquina ligada apenas cumprindo sua obrigação. Era nada.

Eu não poderia falar sobre fidelidade, porque a verdade é que eu desconhecia o sentido daquela palavra. Mas eu gostava de Dimitri, gostava tanto a ponto de me importar, de doer. Ele havia me roubado. Eu nunca percebi. E talvez esse fosse o pior sentimento, a sensação de que eu estive cega por dias, meses, anos da minha vida.

Ainda não havia amanhecido. E durante as madrugadas as paredes daquela mansão se moviam, as janelas se fechavam e portas eram abertas sem ranger. Segredos adormecidos acordavam, sussuros distantes queimavam no pé do ouvido. Manipulação exaustiva, controversa.

Três da manhã.

Três batidas na porta.

Luke abriu.

Os olhos mais silenciosos possível, cruéis, como quem diz: "Bem vinda de volta, Lornan Nirole!"

_Bem vinda de volta, Lornan Nirole! - ele proferiu em voz alta os meus pensamentos baixos. Eu levantei o olhar lentamente. Luke se afastou, abrindo espaço ao seu quarto. - O que te trás até aqui?

Eu olhei atrás dele. Não conseguia ver muito do seu quarto escuro. Tudo o que estava nítido era a luz acesa do laptop na cama e a sua desordem temporal. Seria difícil obter organização de Luke onde quer que estivéssemos.

_Vai entrar ou não, caralho? - dessa vez sua voz ficou mais alta. Ele estava irritado como sempre, mas não havia coçado o queixo ou a nuca. Isso era bom?

Eu não respondi nada, não a princípio. Passei por Luke silenciosa, sombria. Ele apenas me observou morrer devagar dentro da sua própria cova.

Estar perto de Luke me trazia memórias profundas. Era como surfar em um mar de serpentes e todas às vezes que eu olhava em seus olhos o veneno escorria pelo canto da boca.

O seu quarto era frio, gelado. As paredes pálidas me encaravam, opressoras. Minha boca estava seca. Sentia uma leve pontada na nuca, mas isso não era nada... Nada comparado ao vazio.

_Preciso de um cigarro. - minha voz soou estranha, mais forte que o normal.

_E o que mais? - Luke, entre um pequeno sorriso maldoso.

_E fogo.

Luke permaneceu estático na porta trancada por algum tempo, até finalmente se mover em direção ao criado mundo ao lado da cama. Ele tirou um maço de cigarro e esqueiro. Caminhou até mim devagar, intenso.

Luke abriu o pacote até então lacrado. Suas mãos tinham movimentos firmes, mas arrastados. Era o silêncio do seu toque que eu conhecia tão bem, o mistério das suas digitais.

Retirou uma única unidade e então a aproximou da minha boca, e sem precisar insinuar nada eu apenas o prendi entre os lábios. Luke acendeu o fogo e o trouxe de encontro ao câncer que eu carregava, concedendo poder de destruição a ele.

O primeiro trago foi meu, o segundo também, mas o terceiro foi dele e o quarto foi nosso quando nossas bocas se aproximaram e se encontram, colidiram e queimaram.

Deus, eu senti as cinzas dançarem na ponta das nossas línguas! E ao me afastar sem fôlego, após sentir a acidez tóxica nos sufocar, nós nos encaramos em sintonia e medo. Ele, medo de me ver partir; Eu, medo de permanecer. E a luz da lua pálida e cintilante era a única testemunha do nosso pecado.

_O que te trás até mim? - ele sabia, é claro que sabia que eu jamais viria sem uma razão maior. - Três batidas às três horas ainda é um código? Não pensei que você pudesse lembrar...

_E como esquecer? Me amaldiçoei durante toda a minha juventude ao te procurar em noites chuvosas.

_Hoje não está chovendo, Lornan. - Luke disse seriamente. - O que aconteceu?

Eu encarei os seus olhos solares. Luke poderia realmente me ajudar? Naquele momento eu não possuía certeza alguma, e viver sem um propósito é o mesmo que estar morto.

Os meus traumas infantis não me deixavam dormir em noites tempestivas. Sempre que isso ocorria eu ia para o quarto de Luke e então me deitava com ele. O seu toque sempre foi frio, mas a verdade é que eu amava me sentir envolvida daquela maneira. Não era mais uma criança na época, sabia que nossa relação ia além da de dois irmãos. Fomos criados juntos, mas não tínhamos o mesmo sangue. Acontece que ele continuava sendo o meu irmão adotivo, portanto a culpa me acompanhou por muitos anos.

Luke foi o meu primeiro homem. Ele foi a primeira dose para um alcoólatra, o primeiro e mais destrutivo sentimento.

Antes que eu caísse Luke me sustentou em um abraço frio como cada célula do seu corpo, como a sua alma. Era essa a única maneira de me manter viva, acesa; porque apesar da sua frieza trazer escuridão, ela refrescava as minhas cinzas.

Antes que eu pudesse perceber eu já estava chorando tempestuosa. Luke não insistiu em entender, ele apenas me acolheu em seu abraço como há muito tempo não o fazia. E ele me envolveu como uma serpente faz com sua presa, ele esmagou todos os meus ossos, mas poupou a minha vida.

Todos os meus traumas infantis retornaram. A sensação de novamente ter sido abandonada ou melhor, de nunca ter sido aceita. A dor silenciosa se soltou da coleira e devorou toda a minha esperança. A parte mais irônica e assustadora é que eu sofri igualmente quando Luke aplicou o primeiro golpe, mas por alguma razão eu busquei conforto nele e naquela mentira.

Eu iria enlouquecer. Chorava a ponto de soluçar e Luke possuía cada átomo da minha alma, se alimentando da minha vulnerabilidade. Pensei que eu fosse forte, mas a verdade é que eu nunca fiz nada certo até aquele momento. E agora ali, entregue a todos os meus erros do passado, minha sentença.

O que mais eu poderia suportar?

O que mais eu poderia amar?

Eu não sei.

Lornan Nirole, em uma noite chuvosa:

"Existe um abismo e existe uma ponte.

A ponte está quebrada.

Existe um abismo e existe uma ponte.

A ponte não significa nada.

Existe um abismo e existe uma ponte.

A ponte é a minha alma.

Existe um abismo e existe uma ponte.

A ponte é a minha esperança arruinada.

Existe um abismo e existe uma ponte.

Mas não importa, irei cair de qualquer maneira, portanto não minta dizendo que irá me segurar.

Existe um abismo e existe uma ponte.

O vazio que me consome.

E se eu sou a ponte, Luke, o abismo é você."

"Eu, eu sigo, eu te sigo
Nas profundezas do mar, querido

Eu te sigo
Eu, eu sigo, eu te sigo

Destino sombrio, querido
Eu te sigo"

- "I follow rivers" / Lykke Li.

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