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Apoiei-me a parede mais próxima, meus olhos estavam embaçados.
Sou uma sombra.
Dizer isso provavelmente não tinha sido algo pensado, porém, é na impulsividade que nós revelamos. Ali ele realmente acreditou que eu fosse uma sombra.
E ele era única pessoa que poderia dizer o oposto.
Não pude culpa-lo, ele de fato não tinha obrigação em me ajudar, livre arbítrio era para isso.
O desapontamento queimou em minha língua, e eu engoli em seco. Recostei a testa na parede de concreto, e sua frieza limpou o fogaréu de agonia em minha mente. Decidi que não importava, eu ainda poderia ajudar-me.
Também não é como se tivesse algo a perder para desistir.
Não sorri, mesmo que o sarcasmo tenha sido muito bom. Foi um pensamento cruel.
Caminhei lentamente para lugar nenhum, o dia estava claro, o azul perfeito do céu saudava os últimos dias do verão, era possível identificar um vento que embora fraco, trazia consigo a frieza do outono.
Decidi que adorava dias assim.
Parei quando senti a areia embaixo dos pés, levantei a cabeça e notei que estava em um parque para crianças, algumas delas faziam castelinhos na areia, outras corriam de um lado para o outro e desciam pelo escorregador, a alegria delas era vibrante, peguei-me curiosa com tamanha energia e me aproximei para aprecia-las melhor.
Acomodei-me em um rangente balanço vermelho desbotado, meu quadril adulto ficou levemente apertado pelas correntes, afundei os dedos dos pés na areia e balancei-me preguiçosamente.
As pernas curtas mexiam-se por todos os lados, sorri quando uma delas sorriu, haviam dentes faltando, o que de alguma forma tornava o sorriso mais brilhante. Elas me lembravam pequenos pássaros frenéticos aprendendo a voar. Elas eram a própria vida.
Pensando sobre a vida, pensei também sobre a morte.
Ela me veio áspero como o ranger de dentes. Pensei mistérios, pensei nas histórias criadas (ou observadas) sobre casas de Hades e Tártaros, o inferno e o paraíso e toda a consciência do astral e dos astros e de tudo que era etéreo; pensei no vazio e no nada que talvez seriamos se nenhuma dessas histórias fosse verdade. Essa realidade me fez tremer, e minha garganta apertou-se.
Como seria não ter consciência? Se morrer é o não pensamento como saberíamos que estamos de fato mortos?
A resposta abateu-me como uma mão agressiva.
Não saberíamos.
Somos todos sombras e pó, grãos de poeira no universo e para ele retornaremos de novo e de novo.
E não saberemos.
Mas seremos.
Ali sozinha e quieta, entre a aflição e angustia, lembrei-me do que brevemente esqueci.
Voltei a olhar a criança do sorriso sem dentes e sorri por ela.
Não sombras, somos luz, grãos dourados de pó.
Senti-me transbordar em calmaria, pois existem algumas certezas.
A certeza de que é precisa reconhecer o brilho de vida em cada ofegar, em cada pequena respiração; no café da tarde e ao mastigar o pão, nos lábios rachados e entre as páginas amareladas de um livro; no rubor das bochechas e nos sabores de chá. Em sorrisos banguelas e nas pernas finas. No ar e no toque.
E até mesmo na morte.
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Naquele dia eu tomei sorvete.
As crianças faziam vila em frente à carrocinha, e se elas adoravam desse jeito, eu também iria.
Assustei-me com o gelo em minha língua e o frio que desceu por minha garganta, eu não esperava por aquilo. Descobri que o quente da boca aos poucos ia se acostumando e aquilo se tornava a melhor coisa do mundo, era fabuloso.
Lambuzei metade do rosto e parte dos braços, era uma comida escorregadia.
Quando o sol estava caindo refiz meu caminho até a Universidade, eu tinha que chegar antes que trancassem as portas, o fantasma que eu era ainda não sabia atravessar paredes.
Aos pés de uma das arvores estava uma mulher gravida, ela estava sentada em um dos bancos de madeira e tinha um olhar ansioso enquanto uma das mãos acariciava inconscientemente a barriga. De repente seus lábios abriram-se em um sorriso que esbanjava felicidade, olhei para a outra mulher que ela olhava e que vinha com vários livros em sua direção, seus cabelos louros escuros chacoalhavam por suas costas e os óculos grandes escorregavam por seu nariz alongado.
O amor delas me fez parar.
A com os livros lhe ofereceu a mão e a gravida se curvou e beijou de leve sua palma, curvando-se também rapidamente até seus lábios quando já estava em pé. A loura soltou de sua mão ligeiramente para tocar em sua barriga.
Tentei me imaginar no lugar de uma delas, e ter alguém que me amasse tanto assim, meu coração martelou mais depressa. Elas possuíam seu próprio calor, e uma aquecia a outra. Havia mais devoção e proteção no olhar delas do que em qualquer outro que eu já havia observado.
Era assim ser amado. E era lindo.
E parecia ser melhor que sorvete.
Fiquei olhando elas se afastarem até muito depois de tê-las perdido de vista.
Sorrindo, fui direto para a biblioteca, sentia-me renovada, havia tanta beleza no mundo, a gente só precisava abrir os olhos do coração e elas estariam lá, esperando.
Abri a porta e haviam umas poucas pessoas, algumas liam concentradas, outras sussurravam segredos, e uma em particular me chamou a atenção. Parado e de braços cruzados, em uma postura ereta demais e roupas escuras, ele encarava um dos belos vitrais. Sua silhueta escura e comprida com pequenos toques de laranja do Sol tornava a cena lindamente aterrorizante; como uma cobra seria ao dar á luz.
Como se sentisse minha aproximação e desfazendo no ato meu quadro recém pintado, virou os olhos em minha direção.
Olhos de um estranho verde azulado.
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A Longevidade das Borboletas.
Romance"Á oeste, via a figura que para mim representava toda a insignificante e tão cheia de pequenos significados razão de minha existência minúscula se pôr em vermelho. Não é o sol quem foge, é a terra que insiste em pernoitar na escuridão, e nessa noite...