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Eu gostava de sonhar.
Eu quase sempre sabia que estava sonhando, então saia voando por aí, muitas vezes caia e caia até acordar, mas em outros adentrava todo o meu retorcido e misterioso inconsciente.
As vezes sentia que estava perdida (ou achada) tão lá no fundo que o que era real ficava confuso.
E eu comecei a tremeluzir na realidade.
Afinal, o que é real?
Realidades são forjadas a partir do que acredita-se ser real.
Mas, e mesmo o mundo material, porque há mais crença em sua realidade do que no que é formado pela mente humana? Porque o real é ligado ao possível? Ao plano do mundo físico? Porque o impossível é irreal? E se é possível dentro da mente humana, então, assim não seria real?
Santa hipocrisia!
Seria.
É.
Criamos uma realidade objetiva. O subjetivo é excluído.
Real é considerado o que todas as pessoas enxergam, sentem e tocam. Porém, não há como espionarmos a mente alheia, então como saberes se o que ela vê é exatamente da forma como vemos?
Somos os únicos espectadores de nós mesmos. E nenhum de nós é igual, e disso sabemos.
A realidade é um palpite. Um palpite que nos foi ensinado a pensar ser o nosso.
Desconstruí-me e tentei buscar em meus próprios pensamentos tudo o que no mundo material passou despercebido.
O problema é que tenho pensamentos demais.
*******
As conversas banais começaram a se tornar o centro de tudo para mim. A atenção de receber um ''bom dia'' automático apenas porque por acaso alguém passou por um conhecido no corredor era tudo o que queria ouvir.
Eu queria que o seu Jorge da banca de frutas me oferecesse uma maça, e queria levar café para outra pessoa porque ela me pediu. Queria entender outras pessoas a partir de conversas, queria ter uma avó que assa bolos de cenoura e chocolate como ouvi nos corredores.
Houve um dia em que algo esquentou em meu peito quando saia do banheiro.
Eu acabara de ver a idosa do primeiro turno de limpeza, a Senhora Zélia cair de tal modo no chão que quebrará uma das pernas e metade de seu rosto estava danificado. O som seco de seu osso se partindo ecoou em meus ouvidos. Ela não gritava ou falava, mas emitia engasgos mudos e os olhos permaneciam vidrados.
Eu quis tanto ajuda-la.
E não pude.
Quando a levaram eu estava paralisada no chão com o indicador tocando o sangue endurecido deixado por ela.
O formigamento em meu corpo era excruciante, eu precisava tira-lo de mim ou morreria afogada em raiva.
Isso não é raiva.
Isso é ódio.
Fantasma.
Inútil.
Será sempre engraçado como o que almejaremos serão coisas que nos sãos impossíveis.
Não lembro quando me levantei e nem quando decidi socar a vidraça.
O som do vidro quebrando me despertou.
Segundos depois senti a dor pulsar por meus dedos agora vermelhos em pequenos pontos onde vários cortes miúdos haviam se aberto, as juntas escurecendo.
Eu ri em histeria. Toda a raiva diluída.
A mão pulsando, a dor sentida.
Eu percebi-me.
E estava complemente assustada.
Senti-me vazia e inquieta, esse tipo de sentimento machucava-me como nenhuma dor física seria capaz. Esvaziava-me da vida, deixava-me nua e ferida no escuro.
Fui lentamente até a ala na enfermaria da universidade e amarrei algumas ataduras na mão.
Tudo ficará bem, é preciso ter fé, é preciso querer.
Respirei com calma enquanto sentia os pulmões contraírem-se profundamente.
Quando sentei-me no parapeito de uma das janelas da Sala de Debates para sentir o vento olhei para as manchas de sangue no tecido branco que cobriam meus ferimentos e não pude deixar de notar que assim como qualquer outro humano, eu também sangrava.
E isso era maravilhoso.
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A Longevidade das Borboletas.
Romance"Á oeste, via a figura que para mim representava toda a insignificante e tão cheia de pequenos significados razão de minha existência minúscula se pôr em vermelho. Não é o sol quem foge, é a terra que insiste em pernoitar na escuridão, e nessa noite...