Meu inferno particular.

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Na manhã seguinte, lá estava eu, parada e sozinha no meio do pátio da escola. Desta vez, antes do sinal de entrada, eu já sabia exatamente quem eram meus colegas de sala de aula e pude observá-los com muita calma..
Analisei cuidadosamente aquelas meninas, agrupadas de três em três ou quatro em quatro, nunca mais que isso. Os grupinhos eram como uma ceita secreta e ninguém de fora se atrevia a entrar.
Os meninos agiam como animais, gritando, correndo e se chutando, sem qualquer supervisão.
De fato era um lugar muito estranho. Em minha outra escola havia um inspetor no pátio para controlar os excessos, e fazíamos fila para ir até a sala de aula. Ali era uma total desordem.
Eu estava em pé, perto de uma parede cinza, quando o sinal tocou.
Percorri todo o ginásio coberto e subi os dois andares de escadas com minha mochila que parecia pesar trezentos quilos. Como não consegui anotar os horários das aulas quando colocaram no quadro no dia anterior, e eu não tinha nenhum amigo, se quer conhecido, para pedir o caderno emprestado, tive que improvisar.
Não havia como eu chegar para alguém estranho e dizer: “Oi, me emprestas seu caderno? Eu sento na frente e uso esse óculos horroroso, mas mesmo assim não enxergo no quadro”. Sendo assim, tive que levar na mochila todos os livros e cadernos das oito matérias da semana, para não passar vergonha de estar sem material no momento da aula.
Cheguei na sala de aula, sentei no meu lugar, puxei minhas coisas para fora da mochila e veio a primeira professora. Era matemática. Prestei uma atenção absurda naquilo que ela explicava. Imaginem vocês como é aprender matemática sem enxergar os exemplos e explicações escritos no quadro. Era terrível.
Meu maior pânico eram as correções de exercícios onde sempre alguém era sorteado para dar a resposta. Como eu não conseguia copiar os exercícios do quadro, quase enfartava de medo de ter que falar e não saber qual resposta dar, não saber se quer de que problema eles estavam falando.
Entre as explicações eu conseguia escutar, vagamente, o burburinho atrás de mim, falando que minha mochila e meu tênis eram de criança. Havia muita conversa, muita desordem, mas em nenhum momento a professora interrompeu a explicação para solicitar silêncio.
A medida que as aulas iam passando eu ia preenchendo o horário do dia. Na semana seguinte já saberia as aulas de cada período e não precisaria mais carregar todos os livros de uma só vez.
O sinal tocou e meus colegas levantaram. Um deles passou ao lado da minha classe, olhando fixo para meu caderno que estava aberto. Em seguida ele gritou: “Olha, a Eduarda não copiou nada a aula toda!” Nesse momento ele pegou meu caderno, jogou para o alto e, em seguida, chutou-o para o fundo da sala. Todos riram e a professora de matemática que estava arrumando seu material se limitou a passar pelo meu lado e sair pela porta.
Caminhei até o fundo da sala sem dizer uma só palavra, até porquê não havia mais ninguém ali. Juntei meu material, coloquei de volta em cima da minha classe e saí correndo atrás da minha turma que havia sumido.
Eu não fazia a menor ideia de onde o resto da turma estava, mas bastou seguir os gritos para encontrá-los.
Era aula de Educação Física. A maldita matéria que nos força a interagir e nos movimentar.
Cheguei em um ginásio coberto, os colegas estavam sentados nas arquibancadas de cimento. Me sentei em um cantinho, no primeiro degrau, afastada o suficiente dos demais. Há essas alturas eu já nem fazia questão de ficar perto deles.
Surge então, em nossa frente, um professor de meia idade, com cabelos cacheados na altura dos ombros, que parecia ter saído de uma banda de rock dos anos 70. Ele ordenou que os meninos fossem para a quadra aberta, arremessando duas bolas de futebol em direção à porta. Todos correram como um batalhão em guerra, e somente as meninas ficaram ali.
“Juliana, Ana Paula, Débora, venham escolher os times”, disse o professor que segurava uma bola embaixo de cada braço, e mais um caderno, caneta e um apito.
Estas três colegas eram enormes perto de mim e das demais. Falavam aos berros e agiam como idiotas, o que me fez pensar porquê meus pais haviam escolhido aquele colégio para mim. Eu definitivamente não me enquadrava.
Como sempre, e só para variar, fui a última a ser escolhida. Não me importei com isso. Na outra escola em que todos eram meus amigos eu também era a última pois realmente sou muito ruim com esportes que envolvam bolas. Eu gostava mesmo era de patinar, e era boa nisso. Mas nas escolas, se a atividade não tem uma bola para voar nos seus óculos, então ela não conta como esporte.
Rezei mentalmente para ficar no banco de reservas, mas ali não tínhamos essa regalia.
As três “capitãs” fizeram algum tipo de mandinga no meio da quadra para decidir quem jogaria primeiro e qual time sentaria no banco para enfrentar o vencedor na próxima rodada. Desgraçadamente meu time era o primeiro a jogar. Pensei muito em simular um desmaio ou uma dor de barriga, mas desisti.
Era vôlei, o jogo maldito onde a bola sempre cai em cima de mim! Na outra escola eu também odiava Educação Física. Pense você tendo que lidar com um objeto voador redondo em alta velocidade, e que te persegue incansavelmente. Tudo isso sem você enxergar direito. As bolas de vôlei sentem o cheiro do medo e caem sobre a cabeça de quem as teme! Era muito aterrorizante para mim e nunca professor nenhum se deu conta disso.
Logo meu time percebeu que eu não me dava bem com aquilo e, quando a bola vinha em minha direção, alguém corria para me socorrer.
O jogo estava empatado e havia chegado minha vez de sacar. Elas eram muito competitivas, parecia que estavam disputando a copa do mundo. Começaram a gritar umas com as outras para que eu cedesse a vez no saque, o que seria maravilhoso, mas o time adversário começou a gritar de volta dizendo que isso não era permitido.
Fui para a minha posição, peguei a porcaria da bola e olhei para a rede. Era tão longe e tão alta. Há essas alturas minhas mãos já suavam.
Dei meu saque, a bola bateu bem no meio da rede e logo comecei a ouvir os gritos. O time adversário comemorando, como se tivessem encontrado ouro em uma escavação, e o meu time me xingando.
Saí da quadra e fui ao banheiro lavar as mãos e o rosto. Me escondi lá até o fim da aula e o professor nem percebeu.
Quando o sinal tocou voei pelas escadas até minha sala, me sentei e fiquei rabiscando meu caderno enquanto algumas lágrimas escorriam pelo meu nariz e pingavam no papel, formando desenhos estranhos.
Aos poucos a turma começou a chegar. Um garoto que sentava atrás de mim disse que todos já sabiam que eu havia arruinado o jogo, e que ele não entendia como eu estava estudando naquela escola, sendo que meus pais eram donos de uma quitanda.
Bem, não haveria nada de errado com isso, não fosse o fato de meu pai ser Engenheiro Civil e minha mãe Professora.
Como toda criança retraída e introvertida, eu nada disse. Fiquei quieta ouvindo os comentários que faziam a meu respeito. Fui educada para ser uma boa menina, ter educação e não responder às pessoas com grosseria. Isso causou danos irreparáveis nessa fase da minha vida.
A aula seguinte era de Português. Foi uma bagunça. Todo mundo conversava e se jogava coisas e os colegas que sentavam a minha volta não paravam de me aborrecer por um só minuto.
Quando o sinal tocou para o recreio e eu desci até o pátio para comprar um lanche no bar, percebi que algumas pessoas me olhavam de forma estranha. Um menino de outra série educadamente me parou e disse que havia durex colado no meu cabelo.
Fui até o banheiro e passei um bom tempo descolando a fita rosa pink embolada que alguém colocou na minha cabeça. Fiquei pensando por qual motivo a professora não fez nada. Será que não viu? Acho pouco provável afinal eu sentava na primeira classe da fila do meio, bem em frente à mesa dela.
Aquele foi um ano muito, mas muito difícil. Eu odiava aquelas pessoas. Os colegas, os professores, eu sentia raiva de todos eles.
Me perguntava todos os dias porquê não gostavam de mim, porquê não riam das outras crianças gordas, feias, magras, baixas, altas. Hoje a resposta me parece bastante óbvia: faziam isso comigo pois eu era uma criança retraída, que não revidava nem respondia à altura.
Por várias vezes meus pais foram chamados na escola. Os professores sempre diziam que eu era uma má aluna, mas nunca levantaram a hipótese de que talvez eu não enxergasse direito, nem do bullyng que corria solto naquela classe.
O ano inteiro seguiu assim. Eu chegava em casa e esvaziava minha mochila, que sempre estava cheia de bilhetes desagradáveis, cola e sujeira de todo o tipo.
Certa vez as brincadeiras de mau gosto passaram tanto dos limites dentro da sala de aula que a professora de português solicitou que eu me retirasse para falar a sós com a turma. Na realidade ela queria dar um “xingão” neles sem a minha presença. Lembro que fui para o banheiro e chorei muito, tanto que mal conseguia abrir os olhos depois.
Neste dia cheguei em casa e meus pais perceberam que eu havia chorado. Quando me questionaram sobre o que houve, eu desabei. Contei sobre tudo o que estava acontecendo, as piadas, os bilhetes, as agressões, tudo.. Somente naquele dia, quase no final do ano letivo, meus pais tomaram conhecimento do que eu estava passando. Ainda assim não tenho certeza de que eles compreenderam a real gravidade da situação. Hoje em dia vejo crianças que dão um espirro e os pais saem correndo para o psicólogo. Inevitavelmente me comparo a elas. Eu, que fui ao psicólogo com minhas próprias pernas, depois de velha, para tentar consertar e colar os pedaços extraviados pela vida. Teria feito alguma diferença procurar ajuda antes? Nunca saberei.
Quando terminei de contar tudo, minha mãe virou um demônio. No dia seguinte lá estava ela, na escola, pedindo para falar com a professora que solicitou minha saída da sala, que por sinal era a “professora conselheira”, como chamavam na época.
Vanderleia era professora de português, estatura baixa, pele branca, cabelos cacheados, pretos e longos. Andava sempre arrumada, com uma camisa branca de ombreiras ridiculamente altas, saia lápis preta, meia calça e sapatos de salto bem altos.
Quando minha mãe lhe questionou a respeito do ocorrido na manhã anterior, Vanderleia didaticamente disse que tudo não passou de brincadeira de criança/adolescente, e que ela achava que essas tais brincadeiras haviam parado há tempos. Ou seja, desde o início ela sabia e nunca tomou atitude alguma, até o dia em que houve uma situação extrema.
Ela também colocou os fatos de modo que a “culpa” decaísse sobre mim, enfatizando que eu não interagia com meus colegas, era má aluna e não conversava com ninguém.
Não sei ao certo o teor mais profundo da conversa, pois eu não estava presente e minha mãe não me deu detalhes. Só sei que após o ocorrido as coisas se acalmaram um pouco na escola, tornando-se tolerável (nunca agradável) estar ali.
Quando o ano chegou ao fim eu havia pego recuperação em cinco matérias. Foi horrível.
Eu era filha única e neta única por parte de pai e mãe. Estudei como uma alucinada para não decepcionar toda a família, mas não consegui. Perdi o ano e estava decidida que não voltaria mais para aquela escola de gente louca!

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