Relativa paz.

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Antes do início das aulas, saí com minha mãe para comprar o material escolar e ganhei uma mochila nova. Aquela que eu usava antes era do Mickey e meus colegas riam, pois diziam que era de criança. Caramba, a gente era criança!
Peguei na mão meus cadernos e livros com cheirinho de novos e pensei: “Esse ano eu vou estudar”! Mas, por motivos óbvios, eu não gostava de estudar. Ir para a escola havia se tornado uma tortura e eu não era mais uma boa aluna. Acho que fui boa aluna somente até a 4ª série. De todas as disciplinas, o que eu gostava mesmo era Literatura, Redação, Português e História. O resto não me fazia muito sentido.
Em meu segundo dia de aula, acordei mais cedo que o necessário, pois estava apreensiva por causa do dia anterior. Me vesti, tomei um copo de Nescau e fui para o banheiro tentar arrumar meu cabelo, que era indomável. Vocês não tem ideia do que foi ser adolescente em um mundo onde não existia chapinha, nem escova progressiva.
Meu pai me largou na porta da escola e, desta vez eu portava uma mochila maneira e tênis pretos, que eram a nova moda do momento. Naquele ano os meus acessórios não me impediriam de fazer amizades.
Hoje em dia acho isso tão absurdo! Tenho um All Star rosa choque de lantejoulas e uma bolsa do Snoopy, e espero que ninguém se atreva a rir disso!
A psicóloga me interrompeu novamente.
-Duda, porquê você se incomoda tanto com o que os outros pensam?
Eu não me incomodo!
-Tem certeza? Veja o que acabou de me falar.
Eu estava começando a odiar aquela mulher.
-Hoje eu não me importo. Estou te contando uma história bem antiga, pois naquela época eu me importava. Eu era criança, e estava sozinha. Ser aceita era importante. Entende?
Ela sorriu, amavelmente, e passou a mão na testa.
-Se hoje você realmente não se importasse, já teria esquecido uma história que se passou há quase vinte anos. Estou errada?
Por um momento senti vontade de jogar ela no chão e sapatear em cima.
-Não sei responder essa pergunta. Vou continuar te contando.
Chegando à escola no segundo dia de aula, passei novamente pelo gigante portão de entrada do colégio e me dirigi a um canto do pátio, onde pude observar, em paz tudo aquilo. Era mais evoluído que na outra escola. Tinham pessoas mais adultas e meninos mais bonitos. Naquele momento ninguém corria ou se empurrava. Era possível ver e ouvir somente os alunos conversando, aos pares ou trios.
Logo vi meus colegas de classe. Deise, Rebeca, as meninas que usavam tudo cor de rosa e os quatro meninos populares da minha turma. Todas as pessoas com seus grupinhos, como se o resto do mundo não existisse, e como se a gente pudesse ter somente um número limitado de amigos por encarnação.
O sinal tocou e os alunos foram andando em direção às escadas. O mesmo inspetor que gritou comigo no primeiro dia estava na ponta da escada, analisando os alunos que passavam e colocando ordem na multidão. Ele gritava tanto que, acredito, um dia terá problemas em suas cordas vocais.
Subi até meu andar e caminhei por entre as pessoas. Eu parecia invisível. Ninguém me olhava ou falava comigo, ninguém respondia aos pedidos de licença para que eu pudesse passar.
Pude ouvir, em um ponto distante, uma voz estridente e amaldiçoadamente familiar. Rebeca! Ela estava na outra extremidade do corredor e sua risada irritante e alta fazia eco por todo o andar. Como eu estava muito longe, não conseguia identificar sua fisionomia, se ela estava me olhando ou se a risada era por minha causa.
Quando entrei em minha sala e sentei em meu lugar, novamente me senti invisível. Parecia que ninguém havia entrado no recinnto ou arrastado a cadeira para sentar. Os outros alunos estavam tão envolvidos uns com os outros que nem me perceberam.
O primeiro professor entrou. Nunca tinha visto alguém tão alto e magro. Ele tinha cabelos cor de milho em um belo corte cogumelo. Usava um macacão jeans com camiseta branca por baixo e tênis All Star. Veio com um violão em uma das mãos e cadernos na outra. Uma pessoa que, só de olhar, a gente já percebia que era muito legal. Pena que, com um violão, certamente não seria aula de matemática.
Era Ensino Religioso. O homem alto puxou a cadeira para a frente da turma e sentou quase ao meu lado. Ele se apresentou, fez a famosa dinâmica de cada um levantar e falar seu nome e ordenou que formássemos duplas.
“Mas já?”, eu pensei. Sempre achei um saco a necessidade que os professores tem de forçar a convivência e a interação, mas hoje reconheço a importância destas dinâmicas.
Olhei para os lados na esperança de que alguém sorrisse para mim e dissesse: “Eu não tenho dupla, junta aqui!” Isso não aconteceu. Notei que, sentada atrás de mim, estava uma menina que parecia somente observar as duplas se formarem. Sentei de lado na cadeira para olhar melhor. Ela analisava, ainda sentada, o movimento de classes se juntando. O professor, muito despachado, percebeu que eu estava desconfortável com aquilo e foi logo dizendo:
-Tu, junta com a Sol que também tá sozinha!
Ele falava bem alto, quase caí da cadeira de susto.
Sol era a menina sentada atrás de mim. Ela era magra, pele branca, cabelo comprido e castanho. Usava uma faixa azul no cabelo e também tinha óculos relativamente grossos, mas nem perto de chamarem a atenção como os meus. Não pude deixar de reparar que o tênis dela era branco, com cadarços cor de rosa. Pensei comigo: “Essa pobre criatura também deve sofrer.”
Virei minha classe para trás e nos juntamos. Pasmem, ela sorriu! Não me tratou como uma leprosa ou como um alienígena, ao contrário, ela foi muito agradável comigo. Conversamos e quando perguntei por que ela estava sozinha e se era nova na escola, Sol disse que sua melhor amiga não viria na primeira semana de aula, pois estava viajando com os pais.
-Sua amiga está nessa turma?
Ela respondeu que sim, muito sorridente.
Na hora imaginei que, quando a outra amiga voltasse, Sol nem olharia mais para mim, afinal é isso que as pessoas fazem por aqui.
O trabalho em dupla correu tranquilo, era mais uma tentativa de entrosamento. As aulas seguintes também foram normais e, volta e meia, Sol e eu conversávamos. Fizemos até dupla novamente em uma outra disciplina.
Em dado momento comecei a reparar que as brincadeiras de mau gosto não aconteciam somente comigo. Havia um colega chamado Rafael, que sentava na primeira classe da fila da parede. Ele também não era popular e usava óculos bem significativos, mas não tão evidentes quanto os meus. Enquanto ele copiava a matéria do quadro, algum menino ia sorrateiramente até sua classe e amarrava os cadarços dele na mesa, usando nós bem difíceis de desfazer. Ele não parecia se importar muito e perdia algum tempo desatando a armadilha.,Eu achava essa brincadeira de extremo mau gosto, mas nunca me solidarizei ou conversei com ele a respeito de como se sentia. De repente ele também precisava de um amigo e não conseguia pedir ajuda. Isso nunca saberei.
A psicóloga investiu novamente.
-Você acha que as pessoas deveriam tomar a iniciativa de te conhecer, mas você não fazia o menor esforço para conhecer ninguém. Consegue perceber?
É claro que eu conseguia perceber, mas fingi que não ouvi seu comentário e segui minha narrativa.
Na sala de aula, ao meu lado direito, sentava um garoto que, claramente, já me odiava. Seu nome era Jonas, e todos lhe chamavam de Joninhas, pois ele era muito baixinho.
Jonas percebeu que poderia me dizer qualquer coisa e eu não revidaria. Ele passava todo o tempo rindo de mim e jogando papeizinhos bem pequenos em minha direção.
Do lado esquerdo sentava o Alfredo. Alfredo fazia parte dos meninos populares da classe, era lindo, tinha olhos verdes e cabelo castanho penteado para o lado. Ele gostava da Deise, a amiga da Rebeca, e nem me dirigia a palavra. Era como se não existisse ninguém sentada ali ao seu lado.
Quando o sinal para o recreio soou, imaginei que Sol fosse sair correndo para longe de mim. Fiquei feliz quando percebi que ela me esperou e perguntou se eu queria descer e ir ao banheiro. Fomos juntas, sentamos no pátio, lanchamos e conversamos. Ela parecia nem conhecer os outros alunos da turma, muito embora tenha me contado que eram colegas desde a pré-escola.
Ninguém de fora das “panelinhas” conversava com ninguém. Era quase uma seita fechada onde, se eu fosse amiga de um, automaticamente teria que andar com aquela pessoa para o resto da vida.
O recreio passou bem rápido desta vez. Ao voltarmos para nossa sala, enquanto subíamos as escadas, percebi que Rebeca estava em nossa frente, com sua bunda imensa e suas amigas entojadas.
Ela olhou para trás, me viu, cochichou algo com as outras e gargalhou à sua maneira estridente, como sempre fez quando queria chamar a atenção para si. Lembro de ter escutado algo sobre eu ser repetente, e lembro também do olhar de reprovação que Sol lançou a elas nesse momento. Sol parecia ser uma menina muito educada, que jamais faria algo para constranger outra pessoa. Eu estava feliz em tê-la comigo naquele momento, e torcia para que minhas impressões sobre ela não fossem erradas.
Toda aquela primeira semana de aula transcorreu dentro da normalidade. Alguns colegas conversavam o básico comigo, outros torciam o nariz. A Educação Física permanecia a mesma tortura de sempre, com as bolas voadoras em alta velocidade vindo em minha direção. A Rebeca continuava espalhando bullyng pelos corredores e a Sol passou a semana toda comigo, sem fugir ou me destratar.
Sol e eu nos parecíamos muito. Ela também usava óculos, também era muito branca e também amava os animais. Em certos momentos, enquanto transitávamos pelos corredores da escola, eu podia ouvir algumas meninas (das insuportáveis) referindo-se à Sol como “A Monga”. Naquele tempo, toda a pessoa um pouco mais introvertida e estudiosa era chamada assim.
Embora, tecnicamente, eu tivesse feito uma amiga, ainda não me sentia confortável para pedir o caderno dela emprestado para copiar a matéria que eu não conseguia. Sendo assim, eu seguia sem enxergar nada no quadro, com vergonha de mencionar o fato e sem nenhum professor perceber minha inaptidão.
Nós tínhamos aula de datilografia (o que condena muito a minha idade), onde passávamos um período inteiro copiando palavras e textos de um livro, e quebrando nossas unhas naquelas máquinas obsoletas.
As pessoas “normais” deixavam seu livro ao lado da máquina de escrever e iam copiando o exercício a medida que iam lendo. Eu, como não era nada normal, tinha que pegar o livro na mão e segurar bem perto para ler o que estava escrito, devolvendo-o à sua posição ao lado da máquina e datilografando uma linha por vez, repetindo esse processo a cada vez que minha memória falhasse e eu não lembrasse mais o que havia lido para poder transcrever. Demorava um pouco mais mas, graças a esses percalços, hoje em dia minha memória fotográfica é excelente.
Uma coisa que ainda me apavorava muito era a correção de exercícios que os professores passavam durante as aulas e corrigiam simultaneamente. Era apavorante, afinal eu nunca conseguia copiar nada.
Para a correção, seguia-se a ordem das filas da sala de aula, começando pelo primeiro aluno da fileira de um dos cantos. Cada um lia e respondia uma questão. Eu, imediatamente, contava quantos alunos tinham até a minha vez para ver qual questão eu teria que ler e responder. Mais do que depressa eu pedia o caderno da Sol emprestado para ver qualquer coisa e copiava a questão que me cabia. Ocorre que, no meio do trajeto, sempre havia algum aluno que dizia: “Essa questão eu não fiz”. Isso bagunçava todo o meu planejamento e me dava uma baita dor de estômago.
Sem contar as vezes em que o professor dizia: “Vou sortear um número para responder”. Sempre era o número da Duda. Não importava quantos alunos tivessem na chamada, o número sempre era o meu. Essa maldição seguiu até a faculdade. Nunca ganhei sorteio nenhum, nem mesmo a torta de nata da rifa do almoço de colônia. Mas o número da chamada sorteado sim, sempre era o meu.
Certa vez a professora de história encheu o quadro de matéria. Eu gostava dela, era uma mulher de uns quarenta e poucos anos que explicava muito bem p conteúdo. Me senti a vontade em chamá-la e dizer:
-Profe, eu não enxergo no quadro.
Ela me respondeu em voz alta o suficiente para a turma inteira escutar:
-Tu não enxerga ali?
Ela não fez por mal. A pobre coitada tinha um timbre de voz bem alto, além de não ser preparada para esse tipo de situação.
Naquele momento todo o burburinho da sala de aula cessou, e todos os alunos, sem exceções, me olharam. Fiquei muito sem graça.
A professora atribuiu o fato de eu não enxergar à claridade vinda da janela, e ordenou que alguém fechasse as persianas.
Ela sorriu amavelmente e disse:
-Pronto, resolvido.
Nem preciso mencionar que demorei até o segundo grau para abrir minha boca novamente e dizer que não enxergava em um quadro.
A primeira semana havia acabado, e eu tinha me saído melhor do que esperava. Eu não soquei a cara de ninguém, não encontrei nenhum desenho ofensivo dentro da minha mochila e não chorei nem uma vez.
Havia uma certa apreensão no ar por conta da segunda semana de aula, quando a melhor amiga da Sol voltaria de viagem. Eu tinha quase certeza de que ela não ia gostar de mim, e diria para Sol não andar comigo, pois eu era estranha.
Sol não parecia ser o tipo de pessoa que bate boca e contraria os amigos, então eu já estava me preparando e sofrendo por antecipação, caso o pior acontecesse.

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