Reciprocidade

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O ano que havia acabado foi traumático para mim, mas pouco conversei sobre isso com as pessoas.
Não precisei verbalizar para que meus pais compreendessem que não gostaria de voltar a estudar na mesma escola de antes. Por si só isso ficou claro.
Antes das festas de fim de ano, minha mãe me matriculou na mesma escola que ela havia estudado. Ficava bem em frente à casa dos meus avós e, felizmente, era a mesma escola que minha amiga Rebeca estudava.
Minha mãe conversou com a coordenadora, explicou meu caso e disse que a única amiga que eu tina iria para a mesma série que eu,. A coordenadora gentilmente concordou em me colocar na mesma turma que Rebeca, para que eu me sentisse mais acolhida no novo ambiente.
Eu estava passando a tarde na casa dos meus avós quando recebi a notícia de que Rebeca e eu estudaríamos na mesma classe. Foi reconfortante saber que eu não ficaria sozinha depois de passar, novamente, pelo doloroso processo de troca de escola.
Saí pela porta da frente, atravessei a rua correndo e pulei o muro da casa amarela onde Rebeca morava. Fiz o contorno da casa e andei até a porta dos fundos, que sempre ficava aberta. Encontrei minha amiga sentada em uma escada. Ela segurava um lindo balão a gás e estava nitidamente aborrecida.
-O que você tem?
Ela respondeu sem nem me olhar.
-Saí com meu pai e ele não quis me dar uma coisa que eu queria.
Os pais da Rebeca eram separados, então ela sempre ganhava tudo o que queria, mas nunca nada lhe fazia feliz.
-Minha mãe me matriculou na sua escola. A coordenadora disse que vai nos colocar na mesma turma!
Rebeca arqueou as sobrancelhas e seguiu em tom irônico.
-Ah sim, isso porquê você repetiu de ano, né?
Eu era um ano mais velha que ela e, desde que lhe contei sobre minha reprovação Rebeca fazia questão de esfregar isso na minha cara sempre que podia.
Ela continuou.
-Podemos andar juntas, se a Dê deixar.
Dê era a melhor amiga de escola da Rebeca. Elas formavam aqueles tais grupos onde ninguém de fora pode entrar.
Após ouvir essa sequência de comentários estúpidos, lhe dei tchau e voltei para a casa de meus avós. Tive a leve impressão de que jamais seríamos amigas, não fosse o fato de nossas famílias morarem perto e terem nos induzido a conviver desde muito cedo.
No ano seguinte eu decidi que as coisas seriam diferentes. Apesar dos pesares, eu não estaria sozinha, teria conhecidos na turma, não seria uma completa estranha.
No fatídico primeiro dia de aula na escola nova, almocei na casa dos meus avós e depois fui para o colégio a pé, pois era a meia quadra dali.
Percorri a calçada, insegura.Passei por uma enorme porta de ferro e saí dentro de um grande pátio ao ar livre.
Havia muitas crianças correndo e brincando, e os famosos grupinhos de três ou quatro também estavam ali.
Olhei em volta para ver se encontrava Rebeca, mas não a vi.
Observei algumas listas coladas nas paredes de azulejo verde. Elas continham os nomes dos alunos e suas salas de aula e andares correspondentes.
Rapidamente encontrei minha sala e me encaminhei a ela, me sentindo um tanto quanto deslocada.
Subi três lances de escadas e dobrei à direita, dando de cara com um enorme corredor com janelas de um lado e salas de aula do outro. Os alunos se amontoavam ali, encostados nas paredes, observando a todos que passavam, especialmente os novatos.
Encontrei minha sala, entrei e fui logo sentando na primeira classe da fila do meio. Quase todos os alunos já estavam acomodados em lugares mais para o fundo. Me limitei a fechar a cara e olhar para frente para não dar margem a nenhum tipo de gracinha.
Os três primeiros períodos transcorreram tranquilos. O pessoal era mais calmo que na outra escola e os professores mantinham certa ordem dentro da sala de aula.
Basicamente passei pelos mesmos transtornos de sempre. Andar com todo o material dentro da mochila por não conseguir anotar os horários das aulas e não enxergar nada no quadro, sempre fazendo de conta que estava tudo bem.
O sinal para o recreio soou.
Exitei por alguns segundos sentada em minha classe e, olhando para trás, pude ver minha amiga Rebeca, que estava acomodada na última classe de uma das fileiras. Eu não havia encontrado ela antes nas poucas vezes que me atrevi a olhar para trás.
Rebeca saiu de seu lugar e percorreu toda a sala com os braços estendidos e um largo sorriso no rosto. Agradeço até hoje ao meu “delay emocional”, o qual me fez ficar parada por algum tempo antes de reagir. Ela passou pelo meu lado e parou poucos metros à frente, abraçando forte uma menina muito magra que também lhe estendia os braços. Rindo como duas hienas, as duas saíram da sala abraçadas e falando sobre as férias, enquanto eu permaneci sentada, atônita, sem acreditar no que havia acontecido.
Em poucos segundos um senhor muito mal encarado colocou a cara para dentro da sala e gritou:
-É recreio, você não pode ficar aqui! Desce!.
Era o inspetor. Ele usava calça jeans, blusa cinza, tinha uma barba branca enorme e um semblante nada amistoso. Tenho certeza de que, quando ele me mandou descer, minha cara também não foi amistosa, mas fiquei feliz em saber que ali havia alguém que colocasse ordem nas coisas.
Eu desci as escadas e me vi sozinha em um pátio cheio de pessoas que gritavam e corriam, e cheio de grupinhos de meninas eufóricas que conversavam freneticamente sobre suas férias.
Fui até a cantina, onde mais uma porção daqueles seres estranhos se acotovelava e gritava. Pensei:
-Essa gente não conhece fila?
Logo entendi que para ser atendida ali, o que valia era a lei da selva. Era cada um por si! Fui me enfiando em meio à multidão, balançando uma nota de dez reais em direção ao homem do bar, até que ele me atendeu. Comprei um copo de Coca-Cola (meu vício desde aquela época) e uma coxinha gigante de frango que era uma delícia.
Saí do meio da multidão protegendo minha comida das pessoas que passavam correndo, evitando que esbarrassem em mim. Procurei um lugar silencioso e seguro para me sentar e comer em paz. Desde muito nova sempre odiei gritos e barulho excessivo. Acho que já nasci um pouco velha para isso.
Do banco onde eu estava, avistei Rebeca e sua amiga hiena-magrela dos abraços. Sorri amigavelmente e acenei como uma idiota. Só então percebi que ela estava fingindo não me ver.
Rebeca era uma criança baixinha e atarracada, de cabelo castanho e pele morena. Como já mencionei, era filha de pais separados e avós muito ricos, e uma criança insuportavelmente mimada que não tinha senso de limites.
Passei a me questionar sobre que tipo de criatura era aquela, e sobre como tinha coragem de fazer isso com alguém que conhecia há tantos anos. Certamente nossa amizade foi imposta pelas nossas famílias e eu nunca havia pensado se realmente queria aquela pessoa perto de mim.
Já comentei aqui que eu era uma criança completamente travada. Eu não tinha habilidade alguma em fazer novas amizades, já que havia estudado em outra cidade, com os mesmos colegas, desde o maternal. Lá a gente ainda brincava de Barbie. Aqui eles já eram adolescentes problemáticos e as meninas pareciam anãs maquiadas correndo atrás dos meninos.
Na minha cabeça eu não entendia o que estava acontecendo. Minha amiga Rebeca, que antes brincava comigo e passava verões inteiros na piscina da casa dos meus avós, que vivia de regime porquê sofria preconceito por ser gorda, agora me ignorava só porquê eu não tinha um perfil popular. Uma gorda evitando contato com uma sardenta de óculos. Parecia até inicio de piada.
A triste realidade que se seguiu foi que minha ex-amiga de infância passou o primeiro dia de aula, e todos os outros do ano, me ignorando completamente.
Quando o primeiro dia de aula terminou, respirei aliviada por ter sobrevivido.
Eu estudava à tarde, então quando saía da escola, às seis horas, ia para a casa dos meus avós que era (e é até hoje) em frente ao colégio. Ali eu esperava meu paiv vir me buscar.
Logo que entrei na casa dos meus avós escutei a buzina do carro. Nem pude soltar os livros. Desci as escadas da frente da casa, as quais eu tinha acabado de subir, e entrei no Fiat Tipo vermelho que meu pai tinha na época. Sentei no banco de trás e minha mãe foi logo perguntando, muito animada, como havia sido o primeiro dia.
Respondi somente um “tudo bem”, não muito sonoro.. Naquele tempo não existia celular, e a gente era forçado a conversar mesmo sem ter vontade.
Minha mãe continuou falando:
-Tu esqueceu teu lanche em cima da mesa. A Rebeca faz a janta e vai ao banco para a mãe dela, e você não lembra nem do próprio lanche. Já está na hora de cuidar das suas coisas.
Foi um comentário infeliz em um momento muito inoportuno.
Nessa hora repassei mentalmente tudo o que havia acontecido naquela tarde, e tudo o que a “Rebeca perfeitinha” havia feito. Não disse uma palavra aos meus pais. Provavelmente até hoje eles não saibam ao certo porquê Rebeca e eu nos distanciamos.
Um fato que até hoje não compreendo é porquê algumas crianças não conversam com ninguém sobre seus problemas, do mesmo jeito que eu fiz naquela época.
A psicóloga, que me ouvia atentamente, me interrompeu.
-Duda, então você acha que foi nessa época que seus problemas emocionais começaram?
Eu estava fazendo terapia há quase dois meses e ela nunca havia me interrompido. Até esse dia, somente eu falava.
Me revirei na poltrona, esfreguei meu nariz e pensei um pouco.
-Não, a coisa toda começou quando conheci o Theo!
-Hum, o Theo Branch, da banda?
-Isso.
Ela continuou:
-E você não acha muito cruel colocar a culpa de toda a sua desordem psicológica em uma só pessoa, e nada em você?
Mentalmente desejei que minha psicóloga explodisse ali mesmo. Ela deveria ficar do meu lado, e não me culpar por todas as desgraças da minha vida!
Mesmo irritada, eu sorri e continuei lhe contando minha história.

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