A chave que girou ao contrário.

79 6 4
                                    

Quando voltamos a morar em Caxias do Sul eu tinha quase doze anos. Todos os meus amigos ficaram na outra cidade e isso me aborreceu muito.
Meus antigos amigos nunca fizeram nenhuma referência ao fato de ser diferente por ter cabelo vermelho e sardas, ou por usar um óculos com lentes bem grossas. Sendo assim, eu não fazia a menor ideia do que era bullyng e de quais complicações emocionais isso acarretaria. Eu nem ao menos sabia que era tão diferente.
Na nova cidade eu tinha apenas uma amiga, a Rebeca. Fiquei feliz em pensar que teríamos mais tempo e nos veríamos com mais frequência.
Meus pais e eu mudamos para um prédio de quatro andares, com dois apartamentos por andar. Cada apartamento tinha umas duas crianças da minha idade. Era uma gritaria e uma bagunça constantes.
A nova cidade parecia ser maior e muito mais assustadora. As crianças da minha idade agiam como mini adultos e ninguém saía para brincar e correr na rua, como eu fazia com a Helena e o Carlos.
Como eram férias de verão, tive tempo de sobra para me enturmar com a nova vizinhança. Em sua quase maioria, meus novos amigos eram todos meninos. A gente se reunia aos fins de tarde para conversar, jogar videogame ou “O Jogo da Vida”, onde eu sempre enchia o meu carrinho com uma porção de filhos (Quem aí se lembra desse jogo?). As tardes com estes novos amigos amenizaram bastante a transição pela qual eu passei, e até me fizeram crer que na escola nova tudo seria tranquilo.
Meus pais não estavam acostumados que eu tivesse amigos meninos e achavam isso tudo muito estranho. Quem sabe se eles soubessem o quanto a mudança me deixou triste, não seriam tão ciumentos. Na verdade eles eram implicantes e super protetores. Me tratavam como um bebê doente para algumas coisas mas, para outras, agiam como se eu fosse normal. Acho que todos os pais são um pouco desse jeito.
Na manhã do meu primeiro dia de aula eu estava bastante apreensiva. Tinha medo de como iria me virar sem nenhum amigo para me ajudar a copiar a matéria do quadro. Mesmo assim, não cogitei a possibilidade de relatar isso a alguém.
Meu uniforme não ficou pronto a tempo e tive que ir para escola com uma roupa normal. Como se não bastasse eu ser novata, sardenta e de óculos, a vestimenta me destacaria ainda mais entre os alunos que, como pude observar, se conheciam há anos.
Lá estava eu, de fusô (nenhuma risada, por favor, era moda!), moletom do Mickey e minha mochila que tinha um relógio enorme na parte de trás e era sensação na escola antiga. Ela era rosa neon, o relógio funcionava de verdade e era da Minie. Foi presente da minha avó paterna..
Quando entrei naquele ginásio enorme e vi todas aquelas pessoas conversando, não tive total certeza de onde deveria ir. Observei que, coladas nas paredes, haviam listas das turmas com os nomes dos alunos. Procurei meu nome, vi o andar e o número da sala e me encaminhei.
Como de costume, sentei na primeira classe de uma das filas do meio. Um bando de “aborrescentes” estranhos me olhava com suas caras mais estranhas ainda. Ninguém muito simpático. Nada de sorrisos e nem de conversas. A treva seria mais agradável!
Os três primeiros períodos se foram e eu sem enxergar nada, não consegui nem se quer copiar os horários das aulas que uma senhora colocou no quadro antes do primeiro professor entrar.
O sinal para o recreio soou e eu fiquei sentada, muda que nem um peixe, observando aquilo que mais parecia uma cavalaria. Todos levantaram e saíram da sala correndo e gritando, alguns até se dando chutes e socos.
Eu não estava acostumada com aquele comportamento. Na outra escola fazíamos fila, era tranquilo e organizado.
Suspirei, abri minha mochila e comi meu lanche ali mesmo, na sala de aula. Era um sanduíche feito pelo meu pai.
Não fui para o pátio, não tentei fazer amigos. Minhas habilidades neste aspecto eram nulas visto que eu tinha estudado com a mesma turma desde o maternal.
Quando o último sinal tocou, juntei minhas coisas, aliviada, e saí da sala.
Pude ouvir conversas de todos os tipos no trajeto, intercaladas com gargalhadas. Dentre elas:
-Essa colega nova é esquisita né? Ela não fala.
-A mochila dela é do Minie! Que retardada, está na pré-escola!
-Ela não está de uniforme, não deve ter dinheiro para comprar.
-Ninguém vai querer ficar com ela.
Aquilo soou tão agressivo, foi tão impactante. Eu nunca havia estado de frente com pessoas perversas, não sabia como lidar. Não sabia o que eu havia feito de errado para causar aquela má impressão.
Naquele dia cheguei em casa com meus cadernos vazios, pois não havia conseguido enxergar nada no quadro.
Minha mãe perguntou como havia sido o primeiro dia e eu me limitei a esboçar um apático: bem.
Fui para o meu quarto e, da janela, fiquei observando meus vizinhos chegarem de seus primeiros dias de aula. Todos alegres e com belos sorrisos no rosto, contando as novidades aos seus pais e irmãos.
Eu tinha vontade de chorar.
Todos dizem que mudar de cidade pode ser como girar a chave em uma vida, mas eu sentia que a tal chave havia virado ao contrário, ou estava quebrada dentro da fechadura.
Naquela tarde, minha mãe e eu fomos para a casa dos meus avós.
Rebeca morava em frente, mas ela estudava à tarde. Eu estava muito chateada, mas não disposta a conversar sobre o ocorrido. Quando o sino da igreja soou seis horas, fui para a frente da casa esperar minha amiga para conversar um pouco.
Avistei ela vindo no fim da rua, puxando um carrinho que carregava sua mochila. Ela usava tênis novos, daqueles de luzinha, e o uniforme completo de sua escola.
Ao me ver, como sempre, não mostrou muito entusiasmo. Eu julgava ser seu jeito de se expressar.
Ela abriu a porta da sua casa e foi entrando sem nem me convidar, mas eu sabia que era para ir atrás.
-E aí Duda, como foi o primeiro dia?
-Foi legal, e o seu?
-Foi ótimo, mas o menino que eu gosto não foi à aula. Ainda bem que o nome dele está na chamada. Quem sabe esse ano a gente fica!
Ela tinha dez anos e estava falando sobre meninos. Na outra cidade a gente ainda brincava de bonecas no recreio. Me senti um completo alienígena.
Então Receba emendou:
-Tu é popular na escola? Eu sou muito popular.
Pensei um pouco e respondi:
-Não, acho que não. Eu sou nova na turma. Não conheço ninguém.
-Ah sim, mas e na outra escola tu não era popular?
-Não, Rebeca. Na outra escola eu só tinha amigos.
Mais tarde eu entendi, da pior maneira possível, qual a diferença entre ter amigos e ser popular.

A vida por trás de um óculos.Onde histórias criam vida. Descubra agora