Eu nasci no dia 09 de agosto de 1982, em uma família de classe média alta, na cidade de Caxias do Sul-RS.
Quando eu tinha poucos meses de vida, meus pais me deixaram com uma das minhas avós para que pudessem dar um passeio.
Minha avó me colocou para dormir no centro de sua cama de casal e, em volta de mim, colocou paredões de travesseiros para evitar que eu rolasse e caísse.
Como eu era muito pequena (aproximadamente seis meses) não lembro de nada. Segundo relatos, minha avó escutou um barulho, como o de algo duro caindo no chão. Ela correu e imagino que a coisa tenha sido assim:
-Otávio, a nenê caiu, a nenê caiu! Precisamos levar ela para o hospital!!!
Otávio é meu avô, casado com minha avó Lourdes. São pais da minha mãe e todos esses pontos de exclamação não são exagero.
Minha família, de descendência italiana, tem uma grande veia dramatúrgica. Todos eles falam três idiomas: alto, muito alto e gritando.
O modo alto é usado em locais onde a maioria das pessoas fala baixo, por exemplo em hospitais, missas ou velórios.
O modo muito alto é usado em conversas triviais que não envolvam mais do que três pessoas.
E, por fim, o modo gritando é usado em almoços de família, discussões em geral e momentos de pânico.
No momento em que minha avó percebeu que eu caí, mesmo não lembrando, tenho certeza de que ela usava o modo “gritando” para pedir ajuda.
Por sorte meus pais chegaram antes que ela ateasse fogo às próprias vestes, e me levaram ao hospital. Lá me fizeram um exame de fundo de olho, que hoje é feito em todos os bebês, mas na época não era. Foi assim que descobrimos que eu era portadora de glaucoma congênito e síndrome de Axenfeld Rieger.
Falando de forma bem básica, da maneira como eu explico para as pessoas, o glaucoma é uma doença onde o nervo óptico (do olho) sofre uma lesão, geralmente por causa do aumento da pressão ocular (dos olhos). Isso faz a visão ir embora e não existe como reverter.
Já a síndrome de Axenfeld Rieger é um pouco mais complicada. Ela decorre da má formação dos tecidos da parte da frente do nosso olho, onde temos a íris e a pupila. No meu caso, minha pupila não é uma bolinha preta como a de todo mundo. Ela é desforme, quase como o olho de um gato, e isso também afeta minha visão.
No fim das contas o fato de eu ter caído da cama foi um baita negócio. Se isso não tivesse acontecido provavelmente descobririam meu problema tarde demais.
Por conta disso, quando eu tinha pouco mais de um ano, meu oftalmologista da época indicou uma cirurgia que não era feita em nosso estado. Sendo assim, minha mãe e minha avó Mercedes, mãe do meu pai, me levaram até Belo Horizonte para fazer minha primeira cirurgia de glaucoma.
Eu fiquei bem com o pós-operatório, mas como glaucoma não tem cura, desde cedo aprendi que teria que usar colírios e ter cuidado com remédios e suas contraindicações. Tenho certeza de que isso me tornou a chata que sou hoje, no que diz respeito a me automedicar.
Ainda bem pequena, meus pais mudaram para uma cidade na região metropolitana do RS. Lá eu estudava em um bom colégio e tinha muitos amigos. Meus colegas e professores me chamavam de “Moranguinho”, por conta do cabelo ruivo.
Nos meus primeiros anos de escola a minha vida já não era muito fácil e, acredite, ia piorar. Não importava o quão na frente eu sentasse ou o quanto eu me esforçasse, eu não conseguia enxergar nada do que estava escrito no quadro.
Já naquela época eu usava meus “super óculos fundo de garrafa”, e mesmo assim não era suficiente para tornar minha visão minimamente normal.
Falando nos meus garrafões, eu sempre digo que quando minha mãe deu a luz, o médico me pegou nos braços e disse:
-Acho que ainda ficou alguma coisa aqui dentro!
Em seguida, meu óculos nasceu também.
Não lembro de um só dia da minha vida em que eles não estivessem sobre o meu nariz ou em minha mesa de cabeceira. Sempre ali, pesados e grossos demais para minha idade.
Mas, voltando à escola, até hoje nada me faz entender por qual motivo eu não abria minha boca para dizer aos meus pais ou professores que eu não enxergava.
Eu sofria calada durante as aulas, suava frio com medo de que me pedissem para ler qualquer coisa que estivesse no quadro, e então todos descobririam que eu não enxergava, mesmo sentando na primeira fila. Na minha cabeça isso era o pior pesadelo.
Sofri muito com a falta de preparo dos meus educadores ao não identificarem que aquela criatura sardenta e de óculos ali sentada, praticamente com a cara grudada no quadro, não copiava nada do que estava sendo repassado. E isso por algum motivo sério, não por preguiça. Depois a cega era eu!
Como eu não conseguia copiar a matéria durante a aula, pedia os cadernos emprestados para os meus colegas e levava para casa, ou ficava copiando no recreio. Ninguém nunca havia rido dos meus óculos e nem me negado ajuda. Apesar de ser difícil, era muito feliz estar ali.
Nesta época da vida eu tinha duas melhores amigas. Uma era a Helena, que morava ao lado da minha casa. A gente não se desgrudava por nem um minuto.
Eu chegava da escola, almoçava, fazia o dever de casa e corria para a casa da Helena para a gente brincar.
Era muito divertido. Os pais da Helena trabalhavam o dia todo e ela ficava em casa sozinha, cuidando do irmão menor, o Carlos.
A mãe da Helena saía após o almoço e, o combinado era que a casa estivesse em ordem quando ela voltasse.
Nós passávamos a tarde toda brincando na rua, pulando o muro das casas dos vizinhos, subindo em pés de laranja ou bergamota e correndo atrás do Carlos, que era uma peste de criança.
Corríamos também atrás do meu cachorro, o Snif. Ela era um salsicha preto, muito fujão. Nossa casa tinha um pátio enorme na frente e era toda cercada, mas o Snif aprendeu a abrir o portão.. Quando ele fazia isso, dava para ouvir o barulho. Minha mãe, que estava em casa envolvida com seus afazeres, só gritava:
-Eduarda, o Sniiiiif!
Lá íamos, Helena, Carlos e eu atrás do meliante de quatro patas.
Onde ele ia? Sempre para o mesmo lugar! Correr atrás do gato do vizinho. Era um gato Persa cinza com cara de nojo, e meu cachorro sempre apanhava dele.
Quando o fim do dia chegava e o relógio acusava cinco horas, pernas para que te quero! A casa da Helena sempre estava uma bagunça e a gente saía correndo para arrumar, pois sua mãe logo chegaria.
Sempre dava tempo de ajudar minha amiga a colocar ordem em tudo. Em seguida minha mãe gritava meu nome na nossa janela da frente e eu sabia que era hora de ir jantar, tomar banho e esperar o dia seguinte.
Minha outra melhor amiga se chamava Rebeca e morava em Caxias do Sul.
Rebeca morava com a mãe em frente à casa dos meus avós maternos. Nos conhecíamos desde bebês, tínhamos somente um ano de diferença.
Ela era baixinha, atarracada e tinha o cabelo liso e castanho claro. Sua personalidade era o oposto da Helena.
Rebeca era filha de pais separados. Seu pai vinha de uma família que tinha muito dinheiro, o que fazia dela uma criança extremamente mimada e mal educada, mas a gente se dava bem.
Eu era uma criança das chamadas muito boazinhas. Não me incomodava que ela sempre escolhesse todas as brincadeiras, os personagens, nem que ela ganhasse de Natal e aniversário todos os brinquedos que uma criança pudesse querer, demonstrando total ingratidão com isso.
Nos encontrávamos somente nos finais de semana em que eu ia visitar meus avós, e nas férias da escola.
Elas eram minhas melhores amigas e, mesmo assim, nunca comentei com nenhuma das duas sobre o meu problema para enxergar certas coisas.
Quando eu tinha onze anos meu oftalmologista indicou novamente cirurgia para tentar melhorar meu caso.
Passei uma semana internada no Banco de Olhos de Porto Alegre.
No dia da cirurgia, lembro bem que a enfermeira foi me buscar no quarto. Eu não pedi para minha mãe ir junto, não fiquei com medo e nem fiz escândalo como muitas crianças fariam. Apenas sentei na cadeira de rodas e deixei que a moça me levasse pelo corredor.
Entrei andando no bloco cirúrgico, sem ter muita noção da gravidade do meu caso. Sentei na mesa e fui logo me deitando. Eu sempre gostei daquele ambiente. Os botões, as luzes, os frascos coloridos. Não sentia medo.
Quando o anestesista foi pegar a minha veia, ele disse:
-Olha para cá, olha que bonito!
Ele apontou para um suporte com várias lâmpadas acesas que focavam o chão.
Eu pensei:
-Que estúpido! Será que pensa que vou chorar por causa da agulha? Será que ele não sabe que não consigo olhar para a luz pois meus olhos doem? Amador!
Só pensei, nada disse.
Fui anestesiada e só lembro do depois, quando uma senhora que empurrava minha maca pelos corredores do hospital tentava puxar conversa para me fazer acordar.
-Cala a boca e me deixa dormir!
Outra vez só pensei, não falei.
A recuperação da cirurgia foi ótima, mas eu não podia ler nem ficar em ambientes muito claros. Helena ia todas às tardes até minha casa para brincar, pois eu não podia sair. Isso durou quase três semanas.
Ao final deste mesmo ano, veio a notícia: meus pais decidiram voltar a morar em Caxias do Sul.
Foi nesse momento que a chave da vida virou. Ninguém peguntou se eu queria, o que eu achava ou com me sentia. Apenas me comunicaram e eu tive que ir.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A vida por trás de um óculos.
RomantizmUma obra de capítulos sequenciais, postados semanalmente.