d o i s

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Olhar para as portas em que passei à meses em cima de uma maca me dá a estranha sensação de pânico. A verdade é que, qualquer sensação nesse momento, é demais para mim.

— Ash, vamos, entre logo. — Jack leva minha mala para dentro.

Passo atrás de passo eu revivo as memórias do dia que decidi que já não valia mais a pena viver. Eu poderia dizer que estar perto da morte me mudou, mas é apenas mais um capítulo em uma vida absurdamente cheia de más experiências.

A sala pequena me recebe. O sofá tão desconfortável de linho marrom que sempre cutuca nosso traseiro com a madeira que está quebrada, a televisão que tem uma pequena mancha no canto, relógio e abajur que combinam com as cortinas.

Lar doce lar.

— Eu devolverei seu celular, porque preciso sair para trabalhar. Você está proibida de usar as redes sociais, está bloqueado para baixar aplicativos sem que eu coloque o código correto, portanto, nem tente. Você vai ter as mensagens à sua disposição, mande pra quem quiser. — Ela engancha a bolsa em seu ombro esquerdo e sai à procura das chaves.

As mesmas que ela colocou em cima da mesa, onde eu consigo ver.

— Na mesa — Aponto.

Ela corre e pega as chaves.

— Estou indo, qualquer coisa, me ligue — E sai, sem dizer mais nada.

Subo as escadas e abro a porta do meu quarto Posso dizer que é como ver uma cena de filme de terror, de novo e de novo sem parar. As cortinas foram trocadas, a cama mudou de lugar, não há mais computador, mas a sensação é a mesma.

Jogo a mochila em cima da cama, pego o celular e mando mensagem para Claire, que no caso seria a única passagem para fora deste inferno no momento.

— Você vai me chamar ou eu vou ter que ir de penetra? — 17:58.

O bip é praticamente instantâneo.

Eu estava pronta pra discar seu número, estamos na Taverna do Rauph, sabe onde fica? — 17:59.

Ela fala como se eu não morasse aqui a vida inteira.

Revirar os olhos é quase involuntário as vezes, principalmente com Claire.

Estou indo de Uber, chego em dez. — 18:02.

Eu sei que não é o mais correto, afinal, acabei de sair do hospital psiquiátrico. Porém, há uma diferença abismal entre juízo e vontade, e nesse momento, o que menos quero é ter juízo e ficar em casa.

Reviver a memória dolorosa do que houve com certeza me levará a loucura muito mais rápido do que conversar com pessoas que não sabem absolutamente nada sobre mim.

Loki me encara de volta e sinto pena do porquinho que significava dinheiro para uma nova guitarra. Sinto raiva por ter perdido meu emprego na Goosebumps, mas não é como se meu emprego tivesse importado muito enquanto eu sangrava dentro do quarto.

Puxo uma camisa preta e minha jaqueta de couro a qual senti tanta falta. Após tanto tempo usando apenas moletons sem personalidade alguma, chega ser estranho sentir o tecido duro proteger meus roliços braços.

Uma notificação brilha na tela do meu telefone, avisando que o motorista do Uber está me esperando na porta de casa. Puxo meu par de All Stars e desço descalça em direção ao carro. Em minutos, estou na frente da Taverna do Rauph, e com cadarços mal amarrados.

O carro para e eu pago. Coloco os pés para fora e piso em uma pequena poça de água, mas resolvo não encarar aquilo como um sinal de que eu deveria estar na minha cama escrevendo algum livro ao invés de estar em lugar como esse.

Ódio a Primeira VistaOnde histórias criam vida. Descubra agora