Meses se passaram, e essa pergunta ainda ecoava no abismo de pensamentos de Yago enquanto ele dirigia a Van no que sobrou de uma São Paulo destruída pelas mãos humanas e forças da natureza. Sem contar as de seu próprio irmão, é claro. Edifícios danificados, comércios, veículos, ruas, hospitais, estações de metrô. Era impressionante como a degradação foi tomando tudo com a rapidez de um fungo, verde escuro, fedido, úmido.
A morte não se sentiria melhor representada passeando por ali, no entanto, os mortos, esses seres tão comuns de se ver caminhando livremente, andavam desfilando seus corpos secos, exibindo putrefações cujos urubus e varejeiras não deixavam de apreciar.
O veículo ia devagar. Tanto tempo se passou, e ainda não encontraram um abrigo digno para se esconderem. Tempo esse passado na Van, dormindo mal enquanto que qualquer barulho vindo do lado de fora os sobressaltava para o perigo de uma horda ou fação.
A comida, que virou um artigo tão escasso, se tornara uma árdua tarefa de encontrar e, na busca por algo que os alimentasse dignamente, eles se expunham a perigos múltiplos. Chegavam a passar um dia inteiro com o conteúdo de uma lata de milho ou outro enlatado que davam a sorte de encontrar, muitas vezes em pertences de pessoas que já haviam morrido há tempos. E Saulo não esquecerá tão fácil da última vez.
Estavam vasculhado um cherry preto parado no meio fio. Não tinha ninguém no banco da frente e, a não ser por algumas malas já revistadas no banco traseiro, não tinham porque revistar o bagageiro, mas por que não tentar? A fome os consumia à quase alucinação. Saulo já se adiantara e a chave estava ali, na ignição, embora o ponteiro do tanque avisasse que estava vazio, claro. Por isso o abandonaram, mas aquilo não queria dizer que não esqueceram alguma coisa útil no porta-malas.
Ela estava ali, deitada, parecendo mesmo que dormia. Se preocuparam em cobrir com os edredons. Da para acreditar? A porra da consciência disse que podia esfriar então era melhor cobrir a vovô para ela não pegar um resfriado. Quando Saulo puxou as cobertas, quase acariciou os macios algodões que cobriam aquela cabeça adormecida, recostada sobre uma almofada amarela florida. Um pouco pálida devido ao calor de se estar trancada sabe-se há quantas horas lá dentro.
— Quem seria tão filho da puta a ponto de deixar uma pobre velhinha trancada no porta-malas? — as gotículas saltaram junto à raiva quando ele perguntou, se virando rápido demais. Yago quis avisá-lo, chegado mesmo a erguer as mãos, mas as gengivas úmidas prenderam nos braços magros de Saulo. — Tire essa desgraçada daqui. Tire essa desgraçada daqui. — Arrumadinhas ao lado, Yago achou as dentaduras, mas Saulo já havia se mijado todo. Quanta gentileza da família. Ao menos tiveram a preocupação em deixar as próteses para o caso dela precisar mastigar algo mais consistente.
Foi como puxar uma sanguessuga, mas para sorte do rapaz, as gengivas não causaram dano maior do que uma sucção arrepiante e a vermelhidão-arroxeada, além da gargalhada que Yago terá todas as vezes que lembrar, com prazer delirante, do rosto contorcido de Saulo implorando para ser resgatado enquanto uma morta se debatia agarrada feito um peixe.
— Mano, você precisa parar com isso.
— É uma disfunção. Você sabe. Eu não reajo bem a situações de estresse.
– Essa velha não te causaria mal nem com todos os dentes.
O problema é que, enquanto a velha de cerca de oitenta anos mastigava o antebraço de Saulo, a urina escorria sem controle algum por sua calça e inundava o interior de seu tênis já não muito limpo. Seus pés, que já sofriam de fungos há semanas, sentiram imediatamente a reação ácida entre os dedos.
– Acha que a família a abandonou recentemente?
– Não vejo mordidas nem ferimentos. Alguma doença a levou ou a família não a quis levar. Um fardo a menos. – Yago ponderou, sem nenhuma emoção. – Está fresca ainda. Não aconteceu há muito tempo. Talvez fora trancada ai e estivesse dormindo antes de morrer.
Uma horda com cerca de vinte mortos estava se aproximando, o que significava que era hora de voltarem para a Van. Não encontraram comida, mas Yago ria enquanto fechava a porta do veículo e, tão distraído enquanto colocava a chave na ignição, não notou a aproximação repentina, até se assustar com o baque.
— Puta merda. — Saulo se sobressaltou com a pancada brusca. Os olhos estatelados analisando a coisa batendo no vidro ao lado de Yago. – Mas que merda é essa?
O morto parado ao lado do motorista mantinha um estado de putrefação amena. Seus cabelos, embora sujos estavam firmes presos ao crânio e os lábios, já tomados pela coloração azulada, não perderam a firmeza total, mas foram os olhos que chamaram a atenção.
Olhava-os fixamente, como se, de alguma forma, reconhecesse alguma coisa, mas além desse fato anormal, ele rosnava. Não as vibrações guturais saídas de uma garganta como um engasgo, mas o de uma besta ameaçadora apenas esperando. Uma ferocidade com resquícios primitivos articulados por alguém... Ciente.
— Deve ter recém-virado. — Yago tenta se acalmar após o susto inicial. — Deve ainda ter energia, por isso a força.
Saulo balança a cabeça, desacreditando. — Porra, cara. Olha a pele dele. Parece alguém que acabou de virar? Esse bicho deve ter um ano já, ou mais. E as roupas? Rasgadas e sujas...
Os murros que o bicho desfere no vidro está chamando demais a atenção dos outros, que já vêm em direção ao veículo.
Yago liga o carro, o motor reage e uma nova pancada faz Yago virar. O vidro está trincando, mas o que eles vêem mal conseguem acreditar.
– Ele está criando presas? – Saulo é o primeiro a observar.
– Não pode ser. Isso é...
Embora Yago não queira aceitar, a coisa do lado de fora de seu carro arreganhando a boca escura, deixa nítida a visão de dentes maiores. Estão crescendo como presas de uma piranha. Longos e afiados. A força também não passa despercebida.
– Estão passando por uma mutação. – Yago murmura quando outro golpe faz mais um trinco no vidro. Ele arranca com o carro e o morto corre. Ambos seguram a respiração ao virem que aquela coisa não está andando no andar característico dos mortos, mas correndo atrás do veículo. Feroz, muito feroz. – É uma mutação...
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Linha Vermelha ll - A Luta Continua
Ficção CientíficaContinuação do livro ll A cidade de São Paulo foi destruída pela praga há alguns anos atrás, assim como o resto do mundo que mudou com a pandemia que começou com uma descoberta dos cientistas para a cura do vírus HIV. Um batalhão de mortos cobriu o...