Capítulo 1

12 1 0
                                    


Capítulo um

A cortina balança. É uma fresca manhã de um dia qualquer da semana e a brisa brinca com o tecido fino, branco como os azulejos da cozinha. No ar, o cheiro de café recém-coado inunda a atmosfera calma enquanto que, da televisão vem o som trêmulo de uma voz masculina. O âncora do jornal parece sufocado com as próprias palavras, por vezes interrompida por uma respiração cautelosa. Do lado de fora vem zunidos, como enxames de vespas, ou moscas. Passos na cozinha, alguém se aproxima e pelo aroma de flores que o acaricia, ele sabe que é Patrícia. Não precisa levantar os olhos para saber que é ela, esteve ali o tempo todo enquanto ele apenas olhava para a tela plana pendurada no alto da parede, pouco depois da mesa, mas ele vê as mãos quando ela coloca a louça branca como nuvens sobre uma tolha azul como o céu. Magras e longas, as veias azuladas pontuando o dorso, dedos esguios segurando a asa da xícara, nada que ele já não tenha visto e tocado centenas de vezes e teria desviado o olhar não fosse a gota que caiu, forte, grossa e vermelha na pele que agora, ele percebe, está mais pálida.

Ele levanta os olhos, ela está ali, parada tal qual um móvel enquanto a xícara treme presa entre seus dedos, – e ele vê agora –, putrefatos. Os olhos trazem uma ligeira cor amarelada, cercando as íris com uma mancha vermelha que vai crescendo como um eclipse do sol. Marcos abre os lábios, pesados ainda enquanto o cérebro tenta mandar um alerta, formando palavras sobre um pensamento que não se formou quando os dentes de Patrícia cravam em seu pescoço com uma fome de cem dias.

***

Já é fim de tarde quando Marcos pula em um sobressalto. Arregalados de pavor, os olhos giram em busca de um perigo iminente prestes a lhe atacar enquanto os ouvidos pulsam por conta do maxilar apertado. Mais uma vez cochilou enquanto estava de vigia. Uma vez mais o pesadelo com Patrícia invadiu seus sonhos, puxando-o para lembranças que ele não sabe se quer esquecer. Apagar o que passou é permitir que ela se vá de vez, e ele não pode deixar que isso aconteça, nem que ela venha a ele morta.

Ele lança o olhar para o lado, certificando-se de que não foi visto dormindo em seu posto, e em seguida o direciona para além da grade, avistando a pequena concentração de mortos na ala afastada, onde uma cerca de arames foi colocada a fim de mantê-los longe. Três camadas de uma altura de dois metros e uma distância de um metro entre elas, fazendo um corredor de segurança caso uma barreira falhe, dando espaço para que eles possam fazer manutenção. Não há incidentes graves há mais de três meses, e eles trabalham muito para que assim continue.

Sozinho em seu posto, observa as crianças chutarem bola, um dos brinquedos que encontraram no porão da escola. Os gritos juvenis típicos da idade são contidos inconscientemente. Já habituadas ao novo mundo, nem se dão conta dos hábitos restritos que trazem consigo, mas a verdade é que a maioria dessas crianças nunca conheceu outra forma de viver que não o medo e a repressão com os próprios modos. Sabem que qualquer emoção ou som mais alto irá chamar a atenção dos bichos, mas a diversão em nada fica devendo e brincam como podem, se exercitando ao lar livre. Marcos está satisfeito em vê-las poderem brincar depois de todo aquele tempo debaixo de terra nos túneis do metrô.

– Se divertem para valer, não é mesmo? – A voz de Gil chega antes que o corpo musculoso se apresente.

– Está quase na hora de entrarem. – Marcos diz, virando e encarando o homem.

– Deixe-as mais um pouco. – Gil rebate, observando orgulhoso sua garotinha correndo atrás da bola. A mão na pistola presa ao coldre da coxa. – Aquele está há tempo demais. – diz, se referindo ao grupo além da fronteira.

– Mandaremos um grupo amanhã para fazer a limpeza. – Marcos olha os dois carros que se aproximam ao longe. A poeira se erguendo em espiral.

– Nossos bravos chegaram. Crianças, hora de entrar. – Gil fala em um tom alto e autoritário, o suficiente para que a bola pare no pé de uma delas na mesma hora. Sacha, que se recupera lentamente e foi incumbida para cuidar dos pequenos, faz sinal com a mão para o grupo de seis e o leva para dentro.

Linha Vermelha ll - A Luta ContinuaOnde histórias criam vida. Descubra agora