Capítulo Dois

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Eros — 

     Como, de repente, o teto se tornou tão interessante? O jeito que a luz emanava da lâmpada e então surgia aquele ponto negro em meu campo de visão, caindo lentamente, mas nunca indo para longe, apenas sumindo aos poucos. Era hipnotizante, podia ficar horas encarando isso, não porque era de fato interessante, mas porque preferia isso do que enfrentar as deusas sentadas do outro lado da mesa, certamente um ato combinado para fazer eu me sentir em um julgamento. Elas, as juízes — Se for sincero, diria que elas ocupariam o lugar de um carrasco. — e eu, o réu culpado, qualquer que seja o crime que elas decidiram que eu cometi.

     — Você some por cinco anos. Cinco anos. — Adrestia disse entredentes, a principal responsável por este tribunal. Mamãe e Harmonia não estavam irritadas até ela chegar e lembrá-las dessas coisas. — E então retorna como se nada tivesse acontecido. Não pode esperar que não vamos querer saber o que fez nesse tempo todo. Você sumiu sem dizer nada, seu moleque insolente!

     Gaia... Por que eu achei que seria uma boa ideia ficar aqui de novo? Devia ter imaginado que um de meus outros irmãos apareceria... Não, deveria ter imaginado que Adrestia apareceria. Deimos e Phobos não se preocupavam muito comigo, sabiam que eu sabia que cuidar, mas a mais velha de nós... Ah, essa iria me atormentar por longas horas em busca de respostas, para então repreender-me por mais longas horas por ter desaparecido.

     — Eu precisava ir.

     — Responda olhando nos meus olhos e responda direito. Eu precisava ir não explica coisa alguma.

     Deixei meu amado teto e encarei minha irmã mais velha. Os cabelos eram do mesmo tom dourado do deus da guerra, assim como o franzido ranzinza dos lábios e o brilho impaciente nos olhos, que aliás, entregavam de onde vinha a outra metade de quem ela era. Adrestia tinhas olhos grandes e brilhantes, com a íris do mesmo tom rosa pálido de nossa mãe. E a altura, ambas eram baixas, mas enquanto minha mãe tinha excesso de malícia para seu tamanho, Adrestia excedia o ideal de irritação. Veja bem, o topo de sua cabeça atingia meu ombro e ainda assim ela conseguia fazer qualquer um ficar com medo dela — Até mesmo eu se tivesse que admitir. Era como um cãozinho fofo ao primeiro olhar, que então revelava-se uma besta colérica que mordia seu tornozelo até arrancar sua perna.

     Esta era Adrestia.

     — Para onde você foi? — Ela perguntou. O braços cruzados e os olhos mostrando que não aceitaria nada além da verdade.

     — Casa. — Disse cruzando os braços também.

     — Casa? — Harmonia repetiu, ela estava a esquerda e imitava a pose intimidadora de Adrestia... Ou tentava.

     — Monte Etna, na Sicília.

     — O que foi fazer lá? — Dessa vez, foi nossa mãe quem perguntou de seu lugar do outro lado de Adrestia.

     Eu devia contar a verdade? Mas isso não as preocuparia ainda mais? Bem, tecnicamente, esse tempo que passei longe serviu para me ajudar a sair daquela bolha de culpa e mágoa na qual eu vivia. Passei dois mil e quinhentos anos me atormentado por algo que não pude impedir, mas mudei isso quando passei esse tempo fora. Não havia porque mentir. Eu estava finalmente voltando a ficar bem, devia mostrar isso a elas.

Então contei a verdade.

     — Eu precisei ir e ficar esse tempo sozinho, porque tinha me cansado de viver correndo em círculos, sempre preso ao passado. — Era um pouco mais difícil dizer isso em voz alta, mas continuei mesmo assim. — Voltei para nossa antiga casa, porque lá era onde minha vida havia começado, fazia sentido que meu primeiro passo para superar... Para superar ela, fosse lá.

     Séculos se passaram, mas eu ainda não conseguia falar seu nome em voz alta. Mas isso não importava, não precisaria dizer seu nome em voz alta nunca mais, ela estava vivendo sua vida em algum lugar do mundo, jamais voltaríamos a nos ver.

     — E porque tinha que ser sozinho? — O questionamento veio de Adrestia, mas sua voz não saiu clara e alta como sempre. Não, seu tom era baixo, permeado por algo semelhante a mágoa e preocupação.

     — Passei os últimos séculos de minha vida arrastando vocês para esse poço de tristeza no qual eu vivia, não queria que se preocupassem mais.

     Seus olhos queimaram assim que terminei de falar. Dessa vez, talvez, só talvez, eu tenha a irritado mais do que devia, eu só não sabia como fiz isso.

     — Somos sua família, seu imbecil! É nosso dever nos preocuparmos com você! — Ela espalmou as mãos na mesa enquanto ficava em pé, a cadeira caindo atrás dela. — Não tinha o direito de decidir isso por nós, muito menos de ir sem dizer nada! Como acha que ficamos quando não te achamos em lugar algum?! Surpresa! Ficamos preocupados de qualquer jeito, mas era ainda pior, porque não tinha nada que pudéssemos fazer para te ajudar!

     Todos ficaram em silêncio, o peso das palavras pairando no ar, até mesmo Hefesto havia deixado a cozinha para ver o que estava acontecendo, mas ninguém disse nada, não quando Adrestia estava parada, a respiração acelerada, o brilho frustrado nos olhos. Harmonia foi a primeira a se mover, erguendo a mão para apertar a da outra, um sorriso tranquilizador no rosto.

     — Podia ter pedido nossa ajuda. — Ela murmurou com o olhar baixo.

     — Eu sei.

     — Então por que não pediu? — Ela retrucou.

     — Eu precisava fazer isso sozinho. — Seus olhos se fixaram nos meus.

     — Por quê?

Suspirei.

     — Por que eram os meus cacos que precisavam ser colados de volta e só eu podia fazer isso.

Novamente o silêncio.

     — Conseguiu? — Essa pergunta me pegou de surpresa, mas a respondi mesmo assim. Só esperava ser realmente verdade o que dizia.

     — Sim, aos poucos. — Sorri tentando afastar essa nuvem densa de emoções que nos cercava. — Não tenho mais vontade de ficar trancado em um quarto escuro e sei que já posso voltar a te dar uma surra em uma luta de espadas.

Eu consegui. Ela sorriu e pude ouvir Harmonia e nossa mãe soltarem o ar aliviadas.

     — Só nos seus sonhos, idiota.

     E então, a nuvem de mágoa e preocupação foi embora. Adrestia foi ir ajudar Hefesto na cozinha — Na verdade, ela fugiu de nossa mãe e irmã que conversavam animada sobre a noite exclusiva para imortais que aconteceria no Ágape, mas aparentemente, só eu havia notado isso. Então me concentrei na conversa das duas, sabe-se lá o que elas planejariam para, como haviam acabado de dizer, a noite grandiosa.

     A quem eu queria enganar? Seria impossível impor limites a elas. Fiquei grato ao saber que ao menos teria alguns dias para me preparar para o que quer que elas fossem fazer.

E novamente eu tentava me enganar... Que Gaia me ajudasse.



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