Capítulo XVIII - Uma Aventura na Estrada dos Tory

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— Anne – disse Davy, sentando-se na cama com o queixo apoiado nas mãos –, Anne, onde fica dormir? As pessoas vão dormir todas as noites, e é claro que eu sei que é o lugar onde faço as coisas que sonho, mas eu quero saber onde fica, e como é que eu vou até lá e volto sem perceber... e, além disso, vou com as minhas roupas de dormir. Onde fica?

Anne estava ajoelhada diante da janela do quartinho do lado oeste, observando o céu do entardecer, que parecia uma grande flor com pétalas cor de açafrão e miolo amarelo vivo. Virou, então, a cabeça ao ouvir a pergunta de Davy, e respondeu, sonhadora:

— "Sobre as montanhas da lua, no profundo vale das sombras."

Paul Irving teria compreendido, ou teria inventado ele mesmo um significado para a frase, mas o prático Davy – que, como Anne comentava frequentemente com certo desespero, não possuía em si nenhuma partícula de imaginação – ficou apenas confuso e desgostoso.

— Anne, acho que você só está falando bobagens.

— É claro que estou, meu menino. Não sabe que só as pessoas muito tolas falam sempre a sério?

— Bom, eu acho que você tem que dar uma resposta séria quando eu faço uma pergunta séria – replicou, num tom injuriado.

— Oh, você é muito pequeno para entender! – disse Anne. Mas ela se sentiu envergonhada por ter dito isso, visto que, ante a lembrança de respostas evasivas que recebera em sua infância, havia feito um voto solene de que jamais diria a criança alguma que era muito pequena para entender. Ainda assim, ali estava ela fazendo isso... tão largo é, muitas vezes, o abismo entre a teoria e a prática.

— Bom, eu estou fazendo o possível para crescer – disse Davy –, mas é uma coisa que não consigo acelerar muito. Se Marilla não fosse tão mesquinha com seus doces, acho que eu ia crescer bem mais rápido.

— Marilla não é mesquinha, Davy! – exclamou Anne, com severidade. — É muita ingratidão você dizer uma coisa dessas.

— Tem uma outra palavra que quer dizer a mesma coisa e parece bem melhor, mas não consigo me lembrar – refletiu Davy, franzindo o cenho intensamente. — Escutei a própria Marilla dizer, ela mesma, outro dia.

— Se você quer dizer econômica, saiba que isso é algo muito diferente de ser mesquinha. Ser econômica é um excelente traço de caráter. Se Marilla fosse mesquinha, não teria ficado com você e Dora quando a mãe de vocês morreu. Gostaria de ter ido morar com Mrs. Wiggins?

— Pode apostar que não! – foi a resposta enfática de Davy. — Nem quero ir pra casa do Tio Richard também. Prefiro muito mais viver aqui, mesmo que Marilla seja essa palavra comprida por causa dos doces, porque você está aqui, Anne! Diga, você não vai me contar uma história antes de dormir? Não quero contos de fadas. São muito bons para meninas, eu acho, mas quero uma coisa empolgante... muitos tiros e gente morta, e uma casa pegando fogo, e coisas desse tipo.

Para a sorte de Anne, Marilla a chamou de seu quarto nesse momento.

— Anne, Diana está sinalizando intensamente. Melhor ir ver o que ela quer.

Anne correu até a janela de seu quarto e viu lampejos de luz no crepúsculo, vindos da janela do quarto de Diana em cinco piscadas – o que significava, de acordo com seu antigo código infantil, "Venha logo de uma vez, tenho algo importante a contar". Anne enrolou o xale branco na cabeça e cruzou apressada a Floresta Assombrada e o pasto de Mr. Bell, em direção a Orchard Slope.

— Tenho boas notícias para você, Anne – disse Diana. — Mamãe e eu recém chegamos de Carmody, e no armazém de Mr. Blair eu vi Mary Sentner, de Spencervale. Ela me contou que as senhoras da família Copp, que moram na Estrada Tory, têm um prato de porcelana azul, e ela acha que é exatamente igual ao que estava exposto no bazar. Ela acredita que ambas irão vendê-lo, pois Martha Copp nunca guarda nada que possa vender; mas, se elas não quiserem, há um outro em Spencervale, na loja de Wesley Keyson, e esse ela tem certeza de que será vendido, mas não está segura de que seja exatamente da mesma qualidade que era o da Tia Josephine.

Anne de Avonlea | Série Anne de Green Gables II (1909)Onde histórias criam vida. Descubra agora