Capítulo XVI - A Essência das Coisas Esperadas

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— Anne! – exclamou Davy, numa voz apelativa, enquanto subia no lustroso sofá de couro na cozinha de Green Gables, onde Anne estava sentada, lendo uma carta. — Anne, estou com uma fome terrível! Você nem imagina!

— Vou trazer uma fatia de pão com manteiga num minuto – respondeu, distraída. Era evidente que a carta continha notícias empolgantes, pois suas bochechas estavam coradas como as rosas do grande arbusto, e seus olhos cintilavam de uma forma que só os olhos de Anne eram capazes.

— Mas não é uma fome de pão com manteiga – ele replicou, em tom desgostoso. — É fome de bolo de ameixa!

— Oh! – riu Anne, deixando a carta de lado e passando o braço em torno de Davy para dar-lhe um apertão. — Este é um tipo de fome que pode ser suportado muito confortavelmente, menino-Davy. Você sabe que uma das regras de Marilla é não poder comer nada além de pão com manteiga entre as refeições.

— Bom, me dê uma fatia, então... por favor.

Davy havia, enfim, aprendido a dizer "por favor", mas sempre o acrescentava como uma reflexão tardia. Olhou com aprovação para a generosa fatia que Anne lhe trouxera.

— Você sempre coloca bastante manteiga, Anne. Marilla sempre coloca bem pouquinho. O pão escorrega muito mais fácil quando tem um montão de manteiga!

A fatia "escorregou" com razoável facilidade, a julgar por seu rápido desaparecimento. Davy deu uma cambalhota do sofá, rolou duas vezes no tapete, e então sentou-se e anunciou decididamente:

— Anne, estou decidido sobre o céu. Não quero ir para lá.

— Por que não? – ela perguntou, gravemente.

— Porque o céu fica no sótão do Simon Fletcher, e eu não gosto do Simon Fletcher.

— Céu no... sótão de Simon Fletcher? – titubeou Anne, surpresa demais até mesmo para rir. — Davy Keith, quem colocou uma ideia tão extraordinária na sua cabeça?

— Milty Boulter disse que o céu fica lá. Foi no último domingo, na Escola Dominical. A lição era sobre Elias e Eliseu, e eu me levantei e perguntei a Miss Rogerson onde ficava o céu. Ela ficou muito ofendida! Ela já estava um pouco irritada, pois quando nos perguntou o que Elias deixou para Eliseu quando foi para o céu, Milty Boulter respondeu: "Suas roupas velhas", e todos nós rimos antes de pensar. Queria que pudesse pensar primeiro e agir depois, porque dessa forma eu nem agiria. Mas Milty não queria ser desrespeitoso. Ele só não consegue pensar no nome das coisas. Miss Rogerson me respondeu que o céu é onde Deus está, e que eu não devia fazer esse tipo de pergunta. Milty me cutucou e disse bem baixinho: "O céu fica no sótão do meu tio Simon, vou explicar no caminho de casa." Então, quando estávamos voltando, ele me explicou. Milty tem jeito para explicar as coisas. Mesmo quando não sabe nada sobre um assunto, ele inventa um monte de coisas, e daí você recebe a explicação de qualquer maneira. A mãe dele é irmã da Mrs. Simon, e ele foi com ela ao funeral quando morreu Jane Ellen, sua prima. O ministro falou que a menina tinha ido para o céu, mas Milty disse que ela estava deitada no caixão, bem na frente deles. Mas ele acha que carregaram o caixão para o sótão depois. Bom, quando Milty e a mãe dele subiram as escadas para pegar o chapéu dela, depois de tudo estar terminado, ele perguntou onde estava o céu para onde Jane Ellen tinha ido, e a mãe dele apontou exatamente para o teto e disse: "Lá em cima." Milty sabia que não existia nada além do sótão em cima do teto, e foi assim que ele descobriu. E ele está terrivelmente assustado de ir para a casa do tio Simon desde esse dia.

Anne pôs Davy sentado em seu colo, e fez o melhor que pôde para endireitar esta complicação teológica. Ela tinha muito mais preparo para essa tarefa do que Marilla, pois recordava sua própria infância e tinha uma instintiva compreensão das ideias curiosas que uma criança de sete anos tem sobre certos assuntos – que são, obviamente, muito claras e simples para os adultos. Ela havia acabado de ter êxito ao convencer Davy de que o céu não ficava no sótão de Simon Fletcher, quando Marilla voltou do jardim, onde ela e Dora estiveram colhendo ervilhas. Dora era uma alminha laboriosa e nunca ficava mais contente do que quando estava "ajudando" em várias pequenas tarefas, adaptadas para seus dedinhos gorduchos. Ela alimentava as galinhas, colhia batatas, secava louças e levava recados. Era asseada, temente a Deus e obediente; não precisava que lhe dissessem duas vezes como fazer alguma coisa, e nunca se esquecia de nenhum dos seus pequenos deveres. Davy, ao contrário, era desatento e descuidado, mas nascera com a inata virtude de se fazer amar, e Anne e Marilla o amavam mais.

Anne de Avonlea | Série Anne de Green Gables II (1909)Onde histórias criam vida. Descubra agora