Nos cumprimentamos, mas me recusei a parar de escrever. Ela entendeu que era importante. Alguns minutos depois, tive que fazer uma pausa para tomar água e esfregar os olhos, dando a ela a oportunidade que esperava.
"Então..." Ela fez uma longa pausa me olhando fixamente com os olhos arregalados. Arregalados, enormes e brilhantes "Como foi seu fim do mundo?"
"Amélia" Disse fingindo um tom mais cansado do que realmente estava "Você bem sabe, já te disse, o mundo acaba e renasce muitas vezes durante a vida de um sujeito, e mesmo que este pertença a uma família abastada e tenha tudo ao alance das mãos, se passar dos vinte, verá o mundo se esfarelando ao menos uma vez e vai perceber que, do farelo mesmo, a vida continua, talvez até melhor."
"Farelo é mó bom" Não consegui segurar a risada, ela fazia umas caretas quando era boba e era absolutamente encantadora quando ficava a vontade para ser boba. "Você tem 25, certo?"
"26, fiz aniversário, sabe?"
"Sei bem, estou aqui por isso"
"Uma semana atrasada."
"Não estou não" Não estava mesmo, estava irritado e tentando contaminá-la. Ora, todos já fizemos isso.
"Tem certeza?"
"Sim, senhor"
"São 26 ou 25?"
"Tenho 23"
"Parabéns, isso tudo?"
"Não, idiota. Tu é de dois a três anos mais velho que eu."
"Se não me engano, sou três anos mais velho que você por um período bem curto de tempo"
"26! Você tem 26, daqui a algum tempo é meu aniversário, ai a diferença volta a ser só de dois aninhos. Jesus, você tá velho, hein?"
"Daqui a dois anos, um mês e duas semanas, você vai ver que não é tão ruim assim."
"Ah é?"
"É, a menos que você morra, ai não vai ver nada."
"Credo!"
"Mas é verdade!" Ela abaixou a cabeça rindo quando eu disse isso.
"E daí que é verdade, é uma coisa horrível de se dizer."
"Ora, posso dizer a mesma coisa sobre você me chamando de velho."
A partir desse momento um sorriso de afinidade não largou mais de nossos rostos. O gelo inicial do encontro fora quebrado. Falávamos como bons amigos novamente. Ela falou que tinha que voltar logo para a escola, pois tinha que dar aula a tarde, e eu a convidei para voltar e passar a noite, um pouco relutante, ela aceitou. Retornou já as cinco da tarde, mais ou menos, e ficamos a conversar até de madrugada. A conversa começou superficial, mas eu dei um bom tiro no escuro que me permitiu ir mais fundo.
"Há algo de estranho aqui, não acha? Uma música bem baixinha, você tá ouvindo? Shhhi!" Virei meu ouvido para ela "Ta vindo de você, uma sinfonia quase monotônica, tão triste, mas tão bonita. O que aconteceu para te fazer soar assim?"
Ela riu, tratou tudo como se fosse alguma excentricidade ridícula minha, de fato era, e disse que não era nada, que estava bem. Mas então, encarando-a fixamente, eu disse "Aha! Peguei você, bem ai nos seus olhos, eu to vendo, a mesmíssima vibração da música, seus olhos parecem dois laguinhos ainda perturbados por uma tempestade que já passou. Mas será que passou mesmo? Eles estão transbordando, mas não querem mais chorar. Você se cansou de chorar, né, Amélia? Comigo é exatamente o contrário, eu gostaria de poder chorar, às vezes, e não posso, não consigo, cresci assim. Por isso em mim não há vibração nenhuma, estou morto, eu tenho lá minha graça quando escrevo, mas mesmo nestes momentos, não sinto nada."
"Você sente muito" Disse ela "E de um jeito bem esquisito, já conheci algumas pessoas como você, mas nenhuma que fosse realmente como você."
"Posso dizer o mesmo ao seu respeito."
"Não pode não" Ela sorria olhando para baixo, esfregando as próprias mãos "Aconteceu algo sim... mas eu não quero falar sobre isso." Esse era o exato ponto de pressão em que só o silêncio penetraria, não disse nada, sequer concordei. Não vou revelar o motivo de ter feito isso, não quero que mais ninguém o faça, é um pouco cruel. "Então acho que já vou..." Disse ela.
"Ora, pensei que fosse dormir aqui."
"Eu não sei, é que..." Ela estava extremamente desconfortável.
"Tudo bem, comece me contando como foi sua semana, então."
"Como assim?"
"Amélia, apenas me conte como foi sua semana. Vai fazer bem." Disse cobrindo as mãos dela com as minhas. Foi então que ela me contou tudo que aqui está relatado. Dormimos assistindo a Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. No dia seguinte, quando ela acordou, eu já estava a escrever, justamente isso, lembro-me que estava escrevendo precisamente sobre Agatha, colocando ali as mesmas impressões que tive quando ouvi a história.
"Mas já está de pé?"
"Sequer fui dormir, só cochilei um pouco."
"Isso não faz bem pra você, deveria dormir."
"Prometo que vou assim que terminar isso aqui."
"É tão importante assim?"
"Não... mas creio ter saúde o suficiente para me sacrificar um pouco."
"Já estou indo." Eu a levei até a porta, lá ela me deu um abraço e me pediu para comemorar seu aniversário com ela. Todos seus amigos estariam lá. Desde então não parei de escrever e aqui estou. Alguns anos já se passaram, na verdade. Qualquer leitor minimamente atento já percebeu que Amélia Kusposnick não mais está entre nós. E qualquer pessoa rica em finesse e humanidade, ou minimamente conhecedora das estatísticas, deve saber como se deu sua partida. Não gosto de pensar sobre isso, mas devo. Não deveria me culpar, afinal sou inocente, mas já me sentenciei a mil anos de culpa mesmo assim. Continuei a retocar este texto ao longo dos anos como uma forma de sempre me lembrar desta jovem preciosa que nos deixou, e também para questionar quão preciosa ela de fato fora.
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Kusposnick, por Otávio Babalsky
Short StoryÁmelia Kusposnick, uma jovem peculiar, desperta no dia do fim do mundo sem perceber que estava prestes a viver o pior dia de sua vida. Mas nada disso importava, tinha que ir trabalhar e dali a uma semana seria aniversário de um amigo, e ela ainda nã...