Capítulo III - Naufrágio

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A quarta-feira não foi muito diferente da terça-feira e as quintas-feiras não são conhecidas por sua capacidade inovação. Tudo que houve num dia houve noutro, algumas coisas faltaram, outras sobraram, mas o sentimento de contentamento ao fim deles estava sempre presente e mantinha mais ou menos a mesma intensidade. Foi na sexta-feira, quanto teve que deixar de acompanhar Agatha no almoço para ir ao banco e resolver seja lá o que as pessoas eram forçadas a resolver apenas nos bancos, que Amélia deparou-se com algo um tanto inesperado. Sentado na sala de espera, com um livro numa mão e o bilhete da senha de chamada em outra, usando uma calça bege com um paletó azul, estava um de seus amigos que ela havia abandonado entre as transições da faculdade. Sentindo-se observado, o rapaz foi vagarosamente tirando seus olhos do livro e virando sua cabeça em direção de sua velha amiga. Amélia era uma criatura de visualmente ímpar, apesar de um estilo meio genérico. O cabelo curto e armado, uma franja que quase tapava suas sobrancelhas, all-stars e longas saias florais parecem ser uma marca visual forte o suficiente. Mesmo assim, mesmo quase sabendo de quem se tratava, a expressão de surpresa só se fez quando os óculos se alinharam com a figura, finalmente, revelando o olhar perdido, os lábios róseos, grossos e entreabertos, e as faces sempre rubras de Kusposnick.

Ele apenas acenou com a cabeça e um sorriso. Kusposnick ficou sem reação e demorou a cumprimentá-lo de volta. Algo parecia irresistivelmente encantador naquele rapaz. Mesmo assim, não se encontra amores em bancos, Amélia sentou-se, não longe, mas também nada muito perto, e esperou.

Quando saía do banco, indo para seu ponto de ônibus, Amélia viu mais uma vez o rapaz da faculdade, que lhe causara tão estranho encantamento, do outro lado da rua. Ele entrava em seu carro, olhou para ela e sorriu, ao fim do sorriso, seu rosto azedou subitamente. Foi apenas já de noite que ela reparou, em suas lembranças, naquele olhar. Aquela súbita mudança no olhar, era um pouco sinistra. Teria ela feito algo a ele? E caso tivesse, por que isso a perturbava tanto?

Queria dormir, mas estava inquieta. Sentia-se exausta, o corpo cedia, a mente a torturava. Havia um recurso, no entanto, de fácil alcance, que sempre tinha variados graus de sucesso. Numa espreguiçada, sua mão dominante percorreu o corpo e parou exatamente em seu ponto de equilíbrio e começando a acariciá-lo tentava seduzir Morfeu para conseguir seu favor, queria um beijinho e uma boa noite de sono, apenas. Quando a mão livre e os pés começaram a se contorcer e da boca soava um capricho apaixonado digno de se tocar no fim dos tempos, suas fantasias começavam a perder a solidez, começavam a libertar-se e o estranho rosto do rapaz, agora nada azedo, reapareceu, e em sua mão estava a dele. Um sorriso veio ao rosto de Amélia e ela se alimentou deste delírio como quem saboreia um doce venenoso. Gozou. Desmoronou profundamente na cama quando o corpo finalmente relaxou. E só ai percebeu que seus desejos a traiam.

Ela se questionava agora.

Queria saber o porquê. Ela sentia ter finalmente encontrado paz em Agatha, e agora as coisas pareciam ter sido colocadas em cheque. Agatha, era justamente o que desejava nas noites mais solitárias, tentava confundir seu próprio toque com o dela, agora, desejava outro toque. Paz, tudo que Amélia queria era um pouco de paz. Todos os seus relacionamentos tiveram um pouco de uma guerra. Onde se investia demais, para no fim apenas se ferir e ir dormir sentindo-se derrotada, falida. Outras vezes, ela era quem sofria dos investimentos cegos dos outros, nestes casos, parecia sentir que ali o universo se equilibrava e assim se permitia tirar, sem culpas, imenso e refinadíssimo prazer da dor que via que seus olhos desapaixonados causavam aos outros. Este prazer não tardava a transformar-se em dor e culpa.

Tudo que a senhorita Kusposnick queria era uma bússola, uma direção, finalmente ela sentia que tinha encontrado algum rumo. Mas agora sua bússola possuía duas ponteiras. O que fazer então? Kusposnick não sabia como lidar com essa divisão.

Já eram duas da manhã quando adormeceu.

Kusposnick, por Otávio BabalskyOnde histórias criam vida. Descubra agora