Capítulo I - Dia Qualquer

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Amélia Kusposnick, acordou no sexto dia, do mês de junho, do ano de dois mil e seis, sem saber que estava prestes a viver o pior dia de sua vida. Ainda sem pistas disso, levantou, foi até o banheiro e jogou um punhado de água fria em seu rosto. Despertando, percebeu um brilho requintado urdindo de sua face, sorriu para si mesma e sorriso não brochou. Sentia-se bela, de fato, a mais bela que pudera ser até então. Daí o dia maldito seguia como todos normalmente seguiam. Preparou e tomou seu café, um ato que ela lamentava ser solitário, mas apreciava, nunca em falta, o sabor. Logo depois ligou para sua mãe e seu pai, pediu bênção, mas nela faltava fé e seus pais a condenavam por isso, mas ultimamente o tom era mais brando. Logo depois, ela falou, com cada um, sobre o divórcio que enfrentavam, pois fé sempre falta quando se falta amor, no fundo, Amélia também os condenava, mas sempre no fundo.

Indo para o ponto de ônibus, foi recebida do lado de fora pelo canto dos pássaros e pelo revigorante frescor matutino. Ela já havia pensado em comprar um carro, mas não se imaginava dirigindo, e desde que o cobrador desistiu de tentar namorá-la, a viagem tornou-se quase prazerosa. Ao chegar na escolinha onde dava aula, Kusposnick, estando adiantada, teve o privilégio de covnsrear com o zelador do colégio, um senhorzinho de idade, feito de gentileza e fios brancos. No entanto, não me lembro qual era seu nome. Ela amava conversar com ele, era um homem inteligente, que falava bem, que tinha muitas histórias e uma risada deliciosa. Sempre a aconselhava como um pai, fora muitas vezes o porto de sanidade de Amélia quando ela se afogava em devaneios ansiosos ou se viciava em sua própria melancolia.

Certa vez, preparou ele mesmo um bolo de chocolate para ela, receita de sua falecida esposa, pois a percebeu perdendo muito peso devido a um resfriado. Certa vez, este zelador também adoeceu, chegou ao ponto de nem ir mais trabalhar. Amélia fez planos de visitá-lo, mas isto foi tudo que fez, planos. Quando ele voltou ao trabalho, ela fingiu que não ficou sabendo e ele fingiu que acreditou pelo bem da amizade. Às vezes, os problemas dos outros pareciam sempre menores que seu incômodo. O ponto alto desse encontro foi quando Amélia ouviu que Agatha tinha procurado por ela no dia anterior.

"O que será que ela queria?" Perguntou Amélia, com o mesmo sorriso de quem começa a embriagar-se com um bom vinho. Mas que vinho seria esse?

"Eu não sei, minha filha, mas ela gosta muito de você, sempre fala de você."

"Ah, então o senhor e ela andam fofocando sobre mim, é?"

"Juro que não. Só temos coisas boas pra falar de você." Amélia sorriu, ficou toda vermelha, alguma onda de felicidade parecia vir do fundo de seu coração, contagiando todo seu corpo. Ela sempre ficava assim quando o assunto era Agatha, mas eu garanto, as duas possuíam apenas uma amizade esquisita e nada além disso.

Mais tarde, já dando aula, um menininho rechonchudo lhe deu um chocolate e, no intervalo, uma mocinha de longos cabelos castanhos veio até ela pedindo por trancinhas. Enquanto trançava o cabelo da menina, Agatha apareceu no corredor e, vendo Amélia, sorriu enquanto corria ao seu encontro.

"Como está sendo o fim do mundo para você, senhorita Kusposnick?" Perguntou Agatha, ignorando completamente a criança.

"Um pouco melhor agora" Respondeu Kusposnick, também ignorando a criança e, agora, fazendo nós em sua cabeça. A conversa foi breve, Agatha queria convidá-la para almoçar, apenas isso.

No almoço, foram a um restaurante e embalaram a comida para a viagem, dali foram a uma praça que sempre estava vazia, era quase uma ilha no meio da cidade, literalmente um conjunto de árvores e passarinhos náufragos em meio ao concreto e asfalto. Entre as garfadas apetitosas o assunto fluía embalado pela brisa suave da tarde.

"Então, senhorita Kusposnick, como acha que será o fim do mundo?" Indagou Agatha, quando já terminava sua refeição "Será que um grande meteoro lilás, carregado das porções certas de bem e mal vai nos atingir no fim do dia equilibrando as energias desse mundo e, por fim, acabando com ele?".

"Ah, o mundo não acaba não, pelo menos hoje não."

"E por que acha isso?"

"Porque hoje é só terça, cara, e semana que vem é aniversário de um amigo meu."

"Ah sei. E esse amigo é tão importante assim? Pra adiar o fim do mundo e tudo?"

"Sei lá, o mundo tem dessas. O mundo não vai acabar, não acaba, nunca acaba e mesmo que acabe, só de teimoso, vai haver mais uma segunda-feira logo no dia seguinte e assim por diante, sem fim."

O jeito indiferente de Amélia, a forma como tinha uma respostinha meio impertinente para tudo, que na verdade refletia apenas sua absoluta falta de respostas genuínas, irritava a qualquer um. "Você é um máximo, Amélia. Juro por Deus." Respondeu Agatha, rindo.

O Assunto foi ficando mais mole, fácil de se levar. Uma deitou no colo da outra e depois trocaram. Depois ficaram sentadas frente a frente. Amélia encarava sua amiga espremendo os olhos e deixando escapar um sorriso suave. Uma verdade precisa ser dita sobre Amélia, seu sorriso era o mais belo, e o mundo não é capaz de encontrar um substituto. Agatha acariciava o braço dela, Kusposnick chegou mais perto e pôs suas mãos na cintura da amiga. Ela podia sentir uma espécie de vibração, uma vibração quente, viva, úmida e perigosamente curiosa, querendo sair de Agatha. A boca partida e trêmula, os olhos crepusculares e o cheiro divino de seus cabelos envenenando a brisa quente. Os lábios, de encontro, deram escape às vibrações antes que elas destruíssem a harmonia do momento. Foi um beijo especial, pois o encaixe foi perfeito, tudo que tinha que ser dito foi dito sem ser dito, dali poderiam deitar-se juntas, ou casar, mas a vontade maior era a primeira. Tratando-se de moças comportadas, boas docentes como são, por ora, ficaram apenas no beijo.

Elas se beijaram.

Logo após o almoço e sem escovar os dentes.

Absolutamente nojento.

As amizades são coisas estranhas. Ou talvez isso explicasse a falta de apreciação de Amélia por homens, ou não, já amara verdadeiramente muitos homens, mesmo sem apreciá-los, não sei, trata-se de uma moça complicadíssima.

Fez-se o silêncio, enganam-se os que pensam que o silêncio é um fenômeno ligado apenas a audição, neste caso, o silêncio podia ser visto, o desconserto que o causava transcendia os ouvidos. Os olhos não se encontravam, ambos os corações batiam rápidos, inquietos, agitadíssimos, mas em descompasso. Será que tinham cometido algum crime?

"Desculpa..." Disse Amélia, sempre diz isso, pobre Amélia "Eu-"

"Não, não precisa se desculpar, é eu nunca fiz isso, sabe?"

"Eu também não" Mentirosa, verdade era, nunca o fizera sóbria e de boa vontade.

Acho que não é necessário pôr aqui todo o desconforto que se seguiu, explicações que não precisavam ser dadas e tudo mais que se imagine. Se beijaram de novo, o intervalo era longo.

Terminadas as aulas da tarde, Kusposnick despediu-se de Agatha marcando de ir ao cinema no fim de semana. Voltando para casa, Amélia deixou-se ficar a contemplar, totalmente embasbacada, as luzes da cidade enquanto uma voz, lá no fundo de sua mente, parecia comemorar o fato de que a vida era bela. Quando de noite deitou sua cabeça no travesseiro, Amélia Kusposnick, pensava consigo que tivera, estranhamente, o melhor dia de sua vida e, com tremenda facilidade, adormeceu.

Kusposnick, por Otávio BabalskyOnde histórias criam vida. Descubra agora