Qualquer um que a visse dormindo daquele jeito diria que aquela era a criança mais linda que conhecia. E realmente era. Não havia como não encantar-se com o aquela expressão tranquila que tomava sua face enquanto ela sonhava, deitada no meio da enorme cama de casal de seu quarto. Tinha os traços retos, perfeitamente desenhados. Quase... divinos. Na verdade, o único elemento que parecia desarmonizar seu rosto angelical era um corte acima da sobrancelha, ainda não completamente cicatrizado.
Os raios de sol atravessavam os vãos da janela e batiam no rosto de Thalia, despertando-a. Ela piscou os olhos preguiçosamente e virou-se na cama.
Quando mexeu o pescoço, uma dor latejante atingiu a parte frontal de sua cabeça. Levou a mão à testa, sentindo o corte com a ponta dos dedos. As lembranças da noite anterior voltaram à sua mente, como um filme. Ela lembrou-se de ter reparado como a mãe parecia estar em uma decadência infindável quando a viu no sofá, em meio às garrafas de uísque, vodca e tequila. Também lembrava-se de que havia pedido à ela que fosse dormir, e, ao tentar tirar o copo de sua mão, havia sido empurrada com violência sobre a mesa de centro, batendo a testa na quina e caindo sobre as garrafas no chão.
A menina levantou-se da cama, evitando movimentos bruscos com a cabeça. Caminhou lentamente até o banheiro de seu quarto. No chão havia uma toalha empapada de sangue – a que havia usado para estancar seu sangramento. A imagem do pano vermelho destoando no enorme banheiro branco era perturbadora.
Thalia fechou a porta e encarou o espelho atrás dela por longos minutos. Passou a mão pelos cabelos que caíam como uma cachoeira negra por suas costas, tentando desfazer os nós. As mechas costumavam ser lisas – ela lembrou-se que a mãe adorava colocá-la no colo e pentear seu cabelo até que ele estivesse impecavelmente escorrido até a cintura. Thalia a perguntava por que seu cabelo era preto, tão diferente do da mãe, e ouvia atentamente enquanto a mulher contava-a que tinha os cabelos e olhos como os de seu pai. Sua mãe passava a escova por suas mechas negras enquanto descrevia seu pai como um homem encantador, que, por trás da imagem fria que passava, era gentil e atencioso. "Mas o que me intrigava era seu mistério", dissera uma vez.
Mas esses momentos não aconteciam há meses. Nos últimos tempos, Thalia podia ouvir a mãe resmungando sozinha sobre um homem que ela desejava nunca ter conhecido. Há alguns dias, escondida atrás do balcão da cozinha, ela viu a mãe atirando garrafas contra a televisão, que exibia uma imagem de si mesma fazendo propaganda de alguma marca famosa, enquanto amaldiçoava o homem que a havia abandonado e arruinado sua vida.
O corte em sua testa havia sido o limite. Na noite passada, após ter sido atirada contra a mesa, ela correu para o quarto e trancou a porta. Chorando, juntou em uma mochila todos os objetos que considerara importantes ou necessários, decidida que não poderia passar mais um dia naquela casa.
Ela não sabia para onde deveria ir. Nunca havia falado com o pai, exceto em sonhos. Sonhos que ela não sabia se podia confiar, mas que pareciam muito reais. Quase como se alguém quisesse avisá-la de algo.
Thalia sabia que havia algo de incomum no pai. Algo que ela sentia ter herdado, e que lhe havia trazido muitas confusões, mas também lhe havia tirado delas. E, ultimamente, quase toda noite ela sonhava com um lugar tranquilo onde... criaturas como ela viviam em segurança.
Ela não sabia como chegar lá, mas tinha certeza que, de alguma maneira, saberia para onde ir. O reflexo no espelho era assustado, mas não hesitante. Thalia abriu as gavetas do armário em busca de uma escova, mas o que encontrou foi outro objeto, que repentinamente tornou-se mais interessante.
Respirou fundo desviou os olhos do espelho. Olhando para baixo, ela juntou o cabelo atrás de sua cabeça e, com a mão trêmula, pegou a tesoura prateada que havia encontrado e cortou-o por inteiro, deixando que os fios pretos caíssem e contrastassem no azulejo branco.
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Família, Luke
Romance"O rosto dele contraiu-se em uma dor tão intensa que até ela pôde sentir. Havia um laço entre eles, um laço criado há seis anos, quando eram crianças correndo pelo país em busca de proteção. Um laço que fazia com que ela sorrisse quando ele gargalha...