↠ três

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A última memória que você tinha da sua mãe antes do diagnostico dela não era uma memória feliz.

Você tinha quatorze anos, antes dos médicos falarem a tão temida palavra "câncer", antes de você ter que observar a pessoa que você mais amava em todo mundo lentamente definhando em uma cama de hospital e a outra pessoa que você mais amava definhando do lado de dita cama também, ficando tão triste que começou a acabar com a saúde física dele também. Sim, foi antes de tudo doer tanto, antes do luto ser tão grande em seu peito que respirar era um processo lento todos os dias pelo resto da sua vida, na época em que você ainda achava, em toda sua inocência, que iria ter a sua mãe para sempre, porque ela era a sua mãe, não é, e ela era imortal, ao seus olhos.

Naquela época.

Você estava a ajudando a tirar as roupas que ela tinha acabado de lavar e secar da máquina, e estava as dobrando também, apesar de que ela fazia o processo todo parecer muito mais fácil e sempre acabava com um resultado melhor do que o seu.

Havia um hematoma nas suas costelas, meio amarelo e começando a ficar roxo, e apesar dele estar escondido pela sua blusa, quando você andava, dava para perceber que ele estava lá. Sua mãe notou bem no segundo em que te viu entrando em casa depois da escola, os lábios dela se franzindo e os olhos se enchendo de tristeza e raiva. Você tinha tentado rir.

Não tinha funcionado muito bem.

"Meninos sendo meninos," você disse, dando de ombros, e ela beijou a sua testa, tremendo apenas um pouquinho, apenas o suficiente para você ainda conseguir fingir que não percebia.

E então você foi a ajudar. Você estava falando, a contando, baixinho, sobre como seu dia tinha sido, deixando de lado o menino que tinha te empurrado na escada e como Albus tinha o socado em troca e recebido uma detenção por isso. Apesar dos seus sussurros, porém, havia algo tão silencioso na atmosfera ao redor de vocês.

Desde a maneira como as roupas estavam tão quentes e sedosas entre as suas mãos até como o sol entrava pela janela, tudo naquele momento gritava silêncio e calma de um jeito que apenas o mais leve toque de melancolia misturado com uma rotina já muito antiga podia gritar.

Não era uma memória feliz, então, mas havia algo pacificamente triste sobre ela. Havia enquanto você a vivia e havia agora enquanto você a recordava, anos depois e sem a sua mãe mais. Tinha sido o último momento em que vocês puderam realmente conversar sem a ameaça de morte pairando sobre as suas cabeças.

Tanto quanto doía, havia algo fragilmente humano sobre ele – fragilmente vivo, como a sua mãe sempre tinha sido.

Talvez você não pudesse descrever aquele momento tão bem assim, porém.

Você muitas vezes sentia como se não soubesse explicar o que estava sentindo, ou, ainda mais frequentemente, como se seus sentimentos não fossem tão válidos quanto eles deveriam ser, e como se eles fossem estranhos demais para você poder os falar em voz alta sem confundir ou irritar as pessoas ao seu redor. Você tinha passado todas as sessões de terapia pós-enterro calado, afinal de contas. Mais do que tudo, havia algo tão absolutamente errado em falar o que você sentia para adultos, que tinham problemas de verdade, como casas que deveriam cuidar e débitos que deveriam pagar e esposas que deveriam enterrar.

Você não conseguia formar as palavras quando estava olhando para eles.

Você, porém, sempre falava tudo para Albus.

Não podia explicar porquê, mas Albus simplesmente te fazia sentir ouvido e visto, sem se esforçar. Na sua cabeça, era como se você pudesse o mostrar cada pequena parte de você para ele, sem razão para sentir medo.

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