Capítulo V - Cartas de Casa

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Nas três semanas seguintes, Anne e Priscilla continuaram a se sentir como estrangeiras numa terra estranha. Então, de repente, tudo pareceu entrar no seu devido lugar – Redmond, professores, aulas, colegas, estudos, vida social. A vida tornou-se homogênea novamente, ao invés de ser feita de fragmentos desconexos. Os calouros deixaram de ser uma coleção de indivíduos que não se relacionavam e tornaram-se um grupo com espírito, interesses, antipatias, grito de guerra e ambições exclusivos. Triunfaram no Torneio Anual das Artes contra os veteranos, e desde então conquistaram o respeito de todas as turmas e uma enorme confiança em seus próprios méritos. Por três anos consecutivos os veteranos tinham vencido o torneio, e o fato da vitória deste ano estar pendurada na bandeira dos calouros foi atribuído à estratégica liderança de Gilbert Blythe, que dirigiu a campanha e criou novas táticas que desmoralizaram os veteranos e levaram os calouros à vitória. Como recompensa por seus méritos, foi eleito presidente da Turma dos Calouros, uma posição de honra e responsabilidade – ao menos do ponto de vista de um novato – cobiçada por muitos. Também foi convidado a ingressar nos "Lambs" – como chamavam ali a Fraternidade de Estudantes Lamba Theta de Redmond –, uma honraria raramente feita a um calouro. Como ritual de iniciação, foi obrigado a desfilar pelas principais ruas comerciais de Kingsport durante um dia inteiro, usando um gorro e um volumoso avental espalhafatoso de algodão floreado. Cumpriu a tarefa com bom humor, tirando seu gorro com graciosa cortesia quando encontrava damas que conhecia. Charlie Sloane, que não havia sido convidado para ser membro dos Lambs, disse a Anne que não conseguia entender como Blythe podia fazer isso, e que ele, de sua parte, nunca poderia se humilhar dessa maneira.

— Imagine Charlie Sloane usando um avental "algodoso" e um "gurrinho" – disse Priscilla, com uma risadinha. — Ficaria idêntico à sua velha avó Sloane. Gilbert, por sua vez, parecia tão varonil assim vestido quanto seria em suas próprias roupas.

Anne e Priscilla viram-se intensamente enredadas no centro da vida social de Redmond. Em grande medida, esta ocorrência se deu tão rapidamente graças a Philippa Gordon. Phil era filha de um homem de fortuna e reputação, e pertencia a uma antiga e exclusiva família "nariz azul". Isto, combinado com sua beleza e charme – encanto este reconhecido por todos que a conheciam –, prontamente abriu-lhe os portões de todos os círculos, clubes e castas em Redmond, e aonde ela ia, Anne e Priscilla iam também. Phil adorava as duas jovens, especialmente Anne. A moça tinha uma alma pura e leal, limpa de qualquer forma de presunção. "Quem me ama, ama minhas amigas" parecia ser seu lema inconsciente. Sem esforço, fê-las ingressar no amplo círculo de suas relações, e as duas jovens de Avonlea encontraram o caminho de sua vida social em Redmond muito fácil e prazeroso, para a inveja e admiração das outras calouras – as quais, por não terem o apoio de Philippa, estavam condenadas a manter-se praticamente à margem destas atividades durante o primeiro ano de faculdade.

Para Anne e Priscilla, que tinham uma visão mais séria da vida, Phil permaneceu como a garotinha adorável e divertida que aparentou ser no dia em que se conheceram. Ainda assim, como a mesma havia dito, ela tinha "muita inteligência". Quando ou onde encontrava tempo para estudar era um mistério, pois parecia estar sempre em busca de algum tipo de diversão e as tardes que permanecia em casa eram cheias de visitantes. Phil tinha todos os pretendentes que seu coração poderia almejar: nove em cada dez dos calouros e um considerável número de rapazes dos anos mais adiantados rivalizavam por seus sorrisos. Estava ingenuamente satisfeita por isso e recontava alegremente cada nova conquista para as duas amigas, com comentários que fariam as orelhas dos desafortunados admiradores queimarem furiosamente.

— Alec e Alonzo não parecem ter nenhum rival sério ainda – comentou Anne, de forma provocadora.

— Nenhum – concordou Philippa. — Escrevo aos dois todas as semanas e conto-lhes sobre os meus jovens adoradores. Estou certa de que isso os diverte. Contudo, obviamente, o rapaz que eu mais gosto não consigo conquistar. Gilbert Blythe não presta nenhuma atenção em mim, exceto para olhar como se eu fosse uma gatinha bonitinha que ele gostaria de acarinhar. Sei muito bem a razão. Tenho inveja de você, Rainha Anne. Eu realmente deveria odiá-la, mas ao invés disso adoro-a demasiadamente e fico triste quando não a vejo todos os dias. Você é diferente de qualquer outra amiga que tive antes. Às vezes, quando você me olha de um certo jeito, sinto o quão insignificante e abominavelmente frívola eu sou, e almejo ser melhor, mais sábia e mais forte. E, então, tomo firmes resoluções. Mas o primeiro jovem bonito que cruza meu caminho derruba toda e qualquer decisão da minha cabeça! A vida na universidade não é magnífica? É tão engraçado pensar que eu a odiei no primeiro dia. Porém, se não tivesse sido assim, eu nunca teria conhecido vocês. Anne, por favor, diga mais uma vez que você gosta de mim, pelo menos um pouquinho! Almejo ouvir isso!

Anne da Ilha | Série Anne de Green Gables III (1915)Onde histórias criam vida. Descubra agora