Capítulo 3

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Não sou o tipo de pessoa que procura encontrar o lado positivo em todas as coisas, mas é inegável que uma coisa boa resultou do original fracasso da isca de peixe: ele salvou a minha amizade com a Autumn.

Autumn e eu nos conhecíamos há séculos por causa da natação. Tínhamos 6 anos quando nossas mães nos matricularam. Autumn freqüentava a Academia Ross desde o maternal, mas eu ia à escola pública, então nunca a tinha visto antes. Prestei atenção nela logo de cara. Os cabelos loiros eram claros, como o interior de uma casca de limão, e iam até a cintura. Gostava da forma como flutuavam na água, e observava com total fascinação o jeito como ficavam verdes durante as aulas, por causa do cloro. Mas não foi só por isso que prestei atenção nela. Era porque Autumn era a nadadora mais agitada da piscina. Ela espalhava mais água do que qualquer outra e sempre parecia estar meio aflita.

Quando o salva-vidas nos colocou em dupla, reclamei, pois toda aula terminava com uma corrida de pranchinha, e os vencedores podiam escolher uma bala no enorme pote de balas que ficava no escritório. Eu sabia bem que Autumn e eu não tínhamos chance alguma, e não tivemos mesmo. Nunca conseguimos uma balinha sequer. Embora eu provavelmente fosse a nadadora mais rápida da piscina, nunca consegui ser rápida o suficiente para compensá-la. Eu até teria ficado brava... Mas Autumn era tão legal. Uma vez, dividi minha toalha com ela, pois ela havia esquecido a dela, e escutei obrigada um milhão de vezes. Também era surpreendentemente boba. Ensinou-me um jeito de fechar a mão na piscina que, quando apertada com forca, soltava um jato de água. Só que aquelas coisas não faziam de nós amigas, apenas garotas que nadavam juntas. Meus pais trabalhavam em empregos que exigiam muito deles — a mamãe tinha uma empresa de arquitetura e o papai um consultório oftalmológico. Eles sempre chegavam exatamente às 14h55, e eu entrava no carro, mesmo antes de conseguir me secar direito. Com Autumn era diferente, assim que saía da piscina, já ia fazendo planos de brincar com uma das garotas, como se a aula de natação fosse um aquecimento para a diversão que viria em seguida. Foi só na última aula, quando o salva-vidas nos deixou pular do trampolim mais alto, que Autumn e eu nos unimos de verdade.

Autumn ficou paralisada de medo, mas eu a forcei a subir a escada comigo.

Principalmente porque nenhuma das outras garotas ia subir, talvez porque todas elas usavam maiô de duas pecas e um salto daquela altura faria com que a parte de cima saísse. Elas ficaram na parte rasa, rindo do estilo de natação dos garotos que se movimentavam como ninjas ou gritavam como o Tarzan. Eu não estava com medo, mas a sensação era de que nunca mais iríamos parar de subir. Lá no topo, nossos dedinhos enrugados se entrelaçaram com firmeza e eu contei até três antes de pular. Bem, eu pulei. Autumn meio que foi puxada por mim, gritando o percurso todo e ficando com a água ate o nariz quando afundamos. Ela saiu da piscina nadando cachorrinho, tossindo muito. Eu a segui, com uma sensação péssima, e decidi ficar sentada ao lado dela pelo resto da aula. Mas, em vez disso, Autumn foi correndo para a escada e continuou pulando sozinha. E toda vez saltava um pouco mais alto, um pouco mais longe. Adorei ver como ela testava a si mesma. Autumn tinha muita coragem, mas estava escondida lá no fundo. Tudo aquilo de que ela precisava era um empurrãozinho meu. Assim que nossas mães chegaram para nos buscar naquele dia, nos apresentamos como melhores amigas.

Autumn e eu éramos definitivamente uma dupla estranha. Ela aparecia na minha casa de saia e sandália, mesmo eu tendo avisado que queria tentar fazer com que os garotos do quarteirão nos convidassem para brincar polícia e ladrão. Ela falava que eu era a pior manicure do planeta. Eu não era levada. É claro que as roupas que eu vestia vinham do meu primo Noah, mas às vezes eu até usava um vestido de verão, mesmo que não fôssemos para a igreja ou jantar fora. Eu tinha uma coleção de ursos de pelúcia que ficavam em uma rede de nylon pendurada em cima da minha cama e chorei como um bebe quando Christopher Clark jogou em mim uma cobra de jardim que tinha encontrado atrás da garagem. Mas antes de Autumn, nunca tinha feito amizade de verdade com uma garota. Não havia nenhuma na minha rua. Autumn era como água com gás, leve e borbulhante. Eu sempre soube disso, mas assim que me transferi para a Academia Ross, no ensino fundamental II, tive a certeza definitiva. Pela primeira vez, vi com que facilidade Autumn fazia amigos, muito mais fácil que eu. Tantas pessoas a cumprimentavam nos corredores. Lembro-me de me sentir com sorte por ter me  tornado amiga dela antes. Com sorte e um pouco assustada. Ela era convidada para noites do pijama. Havia sempre garotas que queriam sentar ao lado dela na hora do almoço. Apesar de Autumn sempre ficar comigo, podia sentir que ela estava se distanciando. Claro que não intencionalmente. Mas acho que dizer não aos convites e tentar conseguir para mim convites de piedade já estava ficando meio ultrapassado para nós. Autumn explicou que às vezes eu era meio sabe-tudo, mas ela disse isso de uma maneira muito mais educada e gentil. Eu não neguei. Meus pais eram do tipo intelectual, e esse tipo de coisa permeava tudo o que fazíamos em família. Tínhamos o nosso rádio da cozinha sempre sintonizado em estações culturais. Fazíamos charadas na hora do jantar. Dividíamos o jornal de domingo. E nossas viagens em família eram para centros científicos, expedições de fósseis ou monumentos históricos. Talvez isso fizesse de mim uma pessoa entranha, mas definitivamente me deixava mais esperta do que a maioria das pessoas que conhecia. Mas inteligência não necessariamente abre caminhos no ensino fundamental.

Eu tinha convidado Autumn para ir comigo e minha família a um show de laser no planetário. Ela fez uma cara de decepção e então me explicou que tinha aceitado um convite da Marci Cooperstein para passar uma semana na casa dela no lago. Eu levei na boa, mas por dentro estava fervendo. Marci vinha tentando interferir na minha amizade com a Autumn há meses. Autumn se manteve distante de Marci, mas creio que a promessa de uso de Jet skis, churrascos e beliches era demais para resistir.  Foram sete dias de pura tristeza para mim. Fiz minha mãe me levar à biblioteca quatro vezes, pois tudo o que eu fazia era sentar no meu quarto e ler. Naquela época, os outros garotos do quarteirão não eram mais amigos, eram só rapazes que se sentiam estranhos quando estavam por perto. Eu não tinha mais ninguém.

Quando Autumn voltou, mais bronzeada do que jamais a tinha visto, dormiu na minha casa por quatro dias seguidos e me deu uma pulseira da amizade que fez especialmente para mim, cortesia do kit de bijuterias de Marci. E ela usou as contas mais legais — esferas de vidro lilases alternadas com pedras brilhantes furta-cor com o formato de minúsculos grãos de arroz. Toda vez que Marci via a pulseira, fervia de raiva. Usei até quebrar, e então recolhi todas as contas que consegui encontrar. Ainda guardo algumas na minha caixa de jóias. Acho que esse tipo de competição devia ter me preparado para o Chad, mas não foi o que aconteceu. Os rapazes não faziam parte da nossa equação. Nem falávamos sobre eles. Isso pode até parecer estranho, mas a nossa amizade tinha essa estranha inocência atemporal. E apesar de saber que podia competir com as Marci Coopersteins da vida, não era páreo para Chad. Ele deixava Autumn completamente hipnotizada.

Uma vez, estava na casa dela praticando um diálogo para um projeto de Francês quando Chad ligou e a convidou para encontrá-lo com alguns amigos perto do Liberty River. Autumn supôs que eu não quisesse ir, mas disse a ela que queria. Fiquei feliz ao ver como ela ficou animada pelo fato de querer acompanhá-la. Estava entusiasmada a ponto de gentilmente me encorajar a usar um de seus casacos e passar um de seus batons.

Tive uma sensação esquisita quando Autumn pegou na minha mão e desviamos da calçada para um caminho estreito na mata. Seguimos por um caminho de terra, cheio de lixo e bitucas de cigarro. Fiquei bem desnorteada apesar de conseguir ouvir o rio, mas Autumn caminhava como se ela fosse ao mesmo tempo Lewis e Clark5. Depois de algumas curvas e voltas, chegamos a uma pedra enorme, assentada em meio à água prateada. Alguns rapazes estavam sentados nela, tomando cerveja e soltando a fumaça do cigarro no céu do anoitecer. Éramos as únicas garotas por lá.

Pensando bem, exagerei, definitivamente. Mas rapazes mais velhos, cerveja, escuridão e mata cerrada estavam muito além do meu domínio. Depois de dez minutos, fingi estar passando mal. Autumn sabia que eu estava fingindo, e me deixou voltar para casa sozinha. Depois disso, ela só convidou Marci.

Achei que a tivesse perdido.

Então aconteceu o incidente da isca de peixe, e eu fui a única pessoa que ficou ao lado dela. Para todo o restante da escola, ela ficou marcada. Os garotos tinham nojo dela, e até mesmo algumas garotas ficaram muito metidas e subitamente passaram a ser boas demais para serem suas amigas. Marci até chegou a rir algumas vezes das piadas que as pessoas faziam. Bem na frente de Autumn.

Disse à Marci que ela era patética. E tomei seu lugar com muita alegria. Andava na frente de Autumn, ou começava a falar bem alto sobre absolutamente nada, usando o campo de força da melhor amiga para distraí-la dos fungadores e das caras de nojo. Acho que algumas pessoas tinham medo de mim. Fiquei conhecida como a nerd com intensidade assustadora que fazia qualquer coisa para proteger a isca de peixe.

Algumas semanas depois, Marci pediu desculpas para Autumn em um bilhete escrito durante a aula de coral. Autumn mostrou para mim. Estava cheio de erros gramaticais. "Voce certa de estar brava comigo", Marci escreveu. Idiota. Achei que Autumn escreveria de volta para Marci, mas ela amassou o bilhete e jogou no vaso sanitário. Nunca senti tanto orgulho dela.

Com a minha ajuda, Autumn transformou o lado negativo em positivo. Juntas, canalizamos nossa energia para o estudo. Autumn nunca foi uma ótima aluna, e naquele primeiro semestre do primeiro ano quase repetiu por causa do estresse com tudo o que aconteceu. Levávamos o almoço para a biblioteca e estudávamos ou fazíamos lição de casa juntas. Eu até consegui incluí-la no conselho estudantil. Mesmo assim, Autumn não se saiu tão bem a ponto de conseguir freqüentar as aulas avançadas, mas entrou na lista das honras comuns da escola, e, contanto que não fizesse nenhuma besteira no SAT, conseguiria escolher a faculdade de sua preferência. Depois de Chad Rivington, Autumn nunca mais teve outro namorado. Isso a salvou de várias desilusões inúteis. E eu, bem, tudo isso apenas me permitiu ser uma boa melhor amiga. O que era tudo que sempre quis ser, para começo de conversa.

Não sou este tipo de garota.Where stories live. Discover now