COMO NUM DESSES MONÓLOGOS VITORIOSOS de clássicos franceses pré-Tomada da Bastilha meu irmão alegou que precisava dar uma festa e "meter uns holofotes no meio do esqueleto" da fábrica abandonada. Minha mãe ouviu de onde estava e perguntou – que história é essa de esqueleto, bem assim – "Que história é essa de esqueleto?" E então, imaginem a cena em câmera lenta: Voices Of Spring, Op. 410 do Johann Strauss sobrepondo as respostas e reações dos dois. Contra a luz as palavras da minha mãe se materializando em nuvens de perdigotos pulverizados em direção a ele e quem mais desse bobeira a meio metro de distância (minha irmã, por exemplo). Ela (minha irmã, por exemplo) quase no mesmo segundo emite algo muito próximo a um miado e tenta sair da zona de ataque sacudindo a cabeça, uma intérprete e tanto para ataques de enxames. E pensar que dali treze anos, aprenderíamos com vídeos em finlandês pelo Facebook que máscaras descartáveis eram essenciais para o combate à contaminação, mas isso é futuro. E então, de volta a música, uns falsetes adequados à fala choramingosa do meu irmão que ia morrendo, morrendo, morrendo a exemplo da gravitação própria dos ombros derrotados em mais uma briga abre aspas sem motivo fecha aspas no harmonioso número 318 da Rua Friburgo. Eu amo essa família. Ah, e assim nasce a Fábrica, com F maiúsculo que no futuro seria motivo de orgulho, (embora muito do que acontecia lá fosse ignorado) para quem tinha conhecido meu irmão bem ali no período cretáceo dos softwares de discotecagem instalados no desktop do mezanino que meus tios faziam de escritório na vídeo locadora.
Hoje meu irmão produz a nova cena clubber que ressurgiu graças a um aplicativo Rainbow não sei o quê, e até consegue defender com argumentos válidos ao melhor estilo, agora, pós-Tomada da Bastilha os motivos para respeitarmos o que ele faz, musicalmente falando, é claro. Isso me lembra uma boa parte entre 2000 e 2007 e – o emotional hardcore surgindo qual primavera em desenho animado nas vinhetas da MTV. Tardiamente o estilo ganharia força nas caixas de som suspensas no pátio, tocando e tocando, nos quase vinte minutos de intervalo até sucumbir aos funks dançantes daquele mesmo período... Ou talvez o fim não tenha sido exatamente por esse motivo. Em 2002 Laila e eu compartilhávamos a opinião de que nosso tempo naquela escola já tinha acabado. Embora faltasse alguns meses até a formatura. Laila desapareceria no mesmo mês da nossa formatura, eu não saberia dizer com precisão, na época eu até achei que pudesse, um tempo depois que os pais dela venderam a casa.
Quando Laila e eu nos conhecemos o limbo de incertezas no qual a escola tinha se transformado, ficou para trás. As tardes não eram mais de conformismo letárgico, de olhar fixo no ponto na parede de tijolos na outra extremidade do pátio onde alguém tinha desenhado mais uma das obscenidades que pululavam o imaginário de garotos que mascavam chiclete excitados ao falarem sobre si próprios.
A oitava série agora era resumida em: correções na fala baseadas em reforço negativo ou Laila distribuindo socos no queixo dos outros quando pronomes pessoais oblíquos eram empregados erroneamente antes de verbos ou simplesmente pelo prazer de fazer quem quer que fosse a vítima achar que tinha feito algo de errado ou como tardes de garoa voltando para casa, depois da aula, sem guarda-chuva, pois, segundo ela, a chuva era Deus ou a Deusa, não se decidia, mas fazia o devido revezamento ao explicar... Ou ainda, como o caderno de capa vermelha que chamávamos de grimório e no qual ela mantinha registros sobre pessoas por quem nutria alguma admiração ou curiosidade, além de recortes, colagens e segredos.
Ela tinha controle sobre nós: as meninas do time de handball, os garotos que falavam de RPG nos intervalos e sobre mim, principalmente. Eu queria ter uma página no grimório e falava de Laila o tempo todo, na educação física fora de horário, em casa, na vídeo locadora dos meus tios, como se ela fosse uma descoberta secular.
Laila passara a ser para mim, naquele lugar aterrador, um modelo, uma referência, uma amiga a quem eu contava uma infância fictícia temendo não ser interessante para ela como ela era para mim. E então o fim iminente do ensino fundamental. O sonho recorrente no qual dançamos na nossa formatura. Descalça ela se aproxima, o hálito quente, e sussurra, diz que conseguiu, o Liceu R. F. B, que estava dentro. E então fala outras tantas coisas que não fazem sentido e eu continuo lá... Até depois de ela desaparecer completamente.
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